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Júlia Rocha

Morrer por câncer de colo de útero é para mulheres pretas e pobres

ECOA

11/10/2019 09h41

Achou racista o título desta coluna? Eu explico. Quem fez esse título possível foi o racismo, mesmo.

Em uma semana e em pleno outubro rosa, duas mulheres negras e pobres vieram me lembrar desta verdade científica explicitada pelo médico espanhol Juan Gérvas em seu livro São e Salvo. Morrer por câncer de colo de útero é ser a prova da negligência repetida e reiterada do estado em seus papéis de prover saúde e educação.

Adriana pediu para que a mãe levasse ao consultório o resultado do exame que colhi há menos de 1 mês. Aos 38 anos, mãe de 5 filhos e tabagista, sua filha estava prestes a receber uma péssima notícia.

Por anos, Adriana se negou a seguir os conselhos insistentes da mãe para que fizesse o preventivo. Trabalhando sem folga, posto de saúde com horários restritos de atendimento, serviço de casa para fazer sozinha… Os motivos foram muitos, e a demora lhe custou caro. Dores pélvicas insistentes e um sangramento após as relações sexuais não lhe deixaram saída. Já na coleta do material, uma lesão no colo me deixou preocupada. Sua mãe trouxe o resultado apreensiva:

"Adriana tá trabalhando. Pediu pra eu trazer, doutora Júlia. Senhora olha pra mim? Tô preocupada demais com essas dor que ela arrumou no pé da barriga."

Mãe sabe das coisas. Já estavam presentes alterações graves. Uma tragédia anunciada.

Em outro episódio, este ocorrido em uma UPA, outra mulher negra de apenas 36 anos me contou do seu calvário. Há 2 meses com sangramentos vaginais recorrentes, peregrinou por 4 serviços de saúde em mais de dez consultas. Em nenhuma oportunidade foi examinada. Recebeu medicamentos hormonais para redução da perda de sangue, o que não resolveu. Usou anti-inflamatórios, sem alívio.

"Não é um sangue de menstruação, doutora. É uma água meio rosa. Parece água de carne guardada na geladeira."

Meu coração chegou a tropeçar. Passei o espéculo e avaliei o seu colo. Uma lesão já avançava sobre as paredes vaginais. Questionada, disse que seu último preventivo já completara 5 anos, mas que nunca conseguia repetir o exame porque o posto do seu bairro só ficava aberto no seu horário de trabalho.

Uma doença que geralmente leva mais de dez anos para se desenvolver e se tornar grave só poderia matar quem não tem tempo ou conhecimento para se cuidar. Mulheres trabalhadoras, com muitos filhos, pobres, sem acesso adequado ao serviço de saúde, com baixa escolaridade e em empregos informais são as maiores vítimas. Você consegue imaginar qual a cor da pele da maior parte dessas mulheres?

Mulheres negras e pobres morrem mais porque estão socialmente mais vulneráveis. Não se trata de uma questão de raça, mas de racismo. Não há motivos biológicos ou anatômicos que as tornem mais frágeis diante do vírus. O que mata essas mulheres é a combinação do racismo estrutural, da pobreza, da negligência estatal e do acesso ruim a serviços de saúde e de educação de qualidade.

Mortes por câncer de colo de útero são o atestado de sucessivas falhas de quem pensa e organiza o sistema de saúde. É uma doença de evolução muito lenta. O rastreio adequado com exames de 3 em 3 anos é mais que suficiente para evitar que lesões se desenvolvam e se tornem graves.

Políticas públicas que previnam tais adoecimentos e evitem a tragédia que é a morte de uma mulher jovem que deixa filhos pequenos deveriam ser prioridade. Leis que garantam tempo livre e protegido para que cuidem da saúde deveriam ser aprovadas com prioridade. Será que uma classe política majoritariamente masculina e branca sabe que isso acontece? Se sabem, se importam?

 

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário