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Júlia Rocha

Aparentemente nossos filhos estão transando sem a nossa autorização

ECOA

18/10/2019 08h00

Foram três diagnósticos somente no último plantão. Três jovens de 15, 16 e 23 anos. Sífilis, gonorreia e Aids, respectivamente. Um dia atípico? Infelizmente, não. Ao que parece, a estratégia de proibir educação sexual nas escolas, de não falar sobre isso em casa, de não enfrentar a realidade em conversas francas e recheadas de informação de qualidade não está funcionando.

E pior: parece que não é só no meu plantão que estes jovens estão chegando. Os estudos mostram que o índice de contágio pelo HIV mais que dobrou entre jovens de 15 a 19 anos, passando de 2,8 casos por 100 mil habitantes para 5,8 na última década. Na população entre 20 e 24 anos, chegou a 21,8 casos por 100 mil habitantes. Em 2016, cerca de 827 mil pessoas viviam com o HIV no país. Aproximadamente 112 mil brasileiros têm o vírus, mas não sabem.

Via de regra, as falas destes jovens ao serem informados do diagnóstico são as mesmas. Há a clássica "mas eu namoro há muito tempo e por isso não uso camisinha". Outra comum é "eu bebi e esqueci de usar", para aqueles que fazem sexo casual com parceiros desconhecidos e resolvem arriscar. E há a completa desinformação, principalmente nas camadas mais pobres da sociedade. É um erro achar que "todo mundo tem internet e acesso à informação". Não tem. E, quando tem, muitas vezes o que chega é de péssima qualidade. Isso sem falar dos casos de abuso sexual. Violências que acontecem dentro de casa.

Não há solução simples para um problema complexo (aliás, guarde esta frase!). Sabe-se que adolescentes com maior escolaridade buscam por mais prevenção. Sabe-se, também, que adolescentes que recebem orientações sobre saúde e sexualidade, a famosa Educação Sexual, iniciam a vida sexual mais tarde, mais amadurecidos. 

No meu mundo ideal, professores, familiares, amigos mais velhos, pais e mães, profissionais de saúde estariam todos com discurso alinhado para bem informar quando fosse conveniente. Não estão. No meu mundo ideal, preservativos, anticoncepcionais, testes rápidos para diagnóstico de infecções sexualmente transmissíveis e seus respectivos tratamentos estariam amplamente disponíveis e com acesso facilitado em qualquer ponto da rede de assistência à saúde. Não estão.

Pensemos, então, em soluções possíveis para o mundo real. Um mundo de recursos cada vez mais escassos para se investir em saúde e educação, de uma educação cada vez mais repressora e moralista, de proibições, de discursos de medo, de negação da ciência e de destruição do SUS. Nossos jovens existem, transam e precisam ser protegidos.

É importantíssimo respeitar as diferentes formas de cada família em lidar com o tema. Muitas falam com desenvoltura e conseguem manter essa via de diálogo sempre aberta. Outras terão mais dificuldades. Há, também, uma diferença nítida na abordagem de meninos e meninas, como se falar para meninos se protegerem fosse mais fácil do que dar a mesma orientação para meninas. Há uma crença inconsciente de que uma conversa como esta "autorizaria" ou "aprovaria" a prática sexual.

Pois bem, aparentemente nossos filhos e filhas estão transando sem a nossa autorização. Aliás, como era de se esperar, não é mesmo? A questão é que eles estão adoecendo. Inclua aqui jovens "proibidos" por seus grupos religiosos de fazerem sexo antes do casamento.

Sem moralismo, sem sermões, sem julgamentos. Como é que nós, pais, professores, tios, amigos, profissionais de saúde podemos conversar com estes jovens que estão por aí arriscando a saúde e a vida sem entender a dimensão e as consequências de seus atos? Ou até entendendo, mas desafiando e testando limites, coisa típica da juventude.

Ao longo do tempo, fui percebendo a importância de falar para cada um, entendendo suas especificidades, compreendendo suas características de forma singular e adequando a minha fala ao que faz sentido para aquele jovem, individualmente. Pensa comigo: todo mundo sabe que tem de usar preservativo. Pergunte aleatoriamente para as pessoas na rua como fazer para evitar a transmissão. Arrisco dizer que 95% ou mais vai responder: usar preservativo. Então, por que não usam?

Penso que a comunicação está falha. Não se vê com a mesma frequência que antes as campanhas de educação sobre o tema na TV, no rádio ou na internet. Quando há, a linguagem é inadequada, impositiva, moralizante. A percepção de que infecções sexualmente transmissíveis são potencialmente graves foi desaparecendo ao longo do tempo. Atualmente se fala pouco sobre isso nas escolas e nas famílias. Via de regra, o discurso é baseado no medo e em proibições. Nunca funcionou. Não vai funcionar agora.

Certa vez, em uma consulta com uma paciente de 15 anos que recebeu ao mesmo tempo o diagnóstico de gravidez e de sífilis, perguntei sobre os métodos que ela e o namorado usavam para se protegerem. Ela me respondeu: "Ele é fiel." Percebem como o buraco é mais fundo? A despeito de tudo aquilo que ela já ouviu, leu e conversou com outras pessoas sobre gravidez e infecções sexualmente transmissíveis, esta ideia romantizada de que bastava seu parceiro ser fiel foi o suficiente para decidir se arriscar. Naquela ocasião, percebi que não valia julgar, condenar, buscar culpados. Desde então, usando o que aprendi com essa adolescente, passei a orientar de outra forma todas as adolescentes que tinham esse perfil.

"Eu entendo você. Sei que vocês já namoram há alguns meses. Sei que o seu namorado é um cara legal, fiel (mesmo que não fosse. Não é hora de afastar, de julgar, de apontar), mas você já pensou que, mesmo sendo um rapaz correto, ele pode ter alguma doença e não saber? Então, ele pode te contaminar, não porque ele te traiu, ou porque foi sacana com você. Às vezes, nem ele mesmo sabe. Não estou dizendo que ele é galinha ou mulherengo. Se ele tiver transado com apenas uma ou duas meninas antes de você e cada uma delas tiver transado com apenas um ou dois meninos antes dele e cada menino com outras duas ou três pessoas e por aí, sucessivamente, você estará exposta a centenas de pessoas, mesmo transando só com ele. Já pensou nisso?"

E, assim, vou convencendo um a um a fazer os testes rápidos para tentar diagnosticar precocemente alguma infecção, vou propondo que os parceiros também façam os testes, vou estreitando os vínculos destes jovens com o serviço de saúde e eles vão aprendendo que não acontece só com o vizinho. Sem julgamento, sem moralismo, mas com informação de qualidade, empatia e uma dose de humanidade.

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário