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Júlia Rocha

Como envenenar sua família: tutorial sobre a comida como um privilégio

ECOA

25/10/2019 09h28

Em algum lugar de um passado não muito distante muitos de nós perdemos  a conexão com algo bem simples e vital: a comida de verdade. Há algum tempo, cozinhar a própria comida se tornou um enorme privilégio. Passamos algumas gerações fugindo do fogão para ter mais tempo dedicado ao trabalho e ao aumento da renda familiar. Aprendemos a comprar comida pronta, se é que podemos chamar aquilo de comida. Foi um afastamento que nos custou algo precioso. Esquecemos como se faz.

É comum que homens e mulheres se declarem incompetentes na cozinha. Fazem isso com orgulho, aliás: "Detesto cozinhar! Não sei fritar um ovo!" É moderno, é descolado, está na moda falar que nunca fez um arroz. E é uma pena!

Formamos nossas jovens famílias e estamos empenhadíssimos em cultivar em nossos filhos o hábito de consumir toda esta praticidade. Começamos cedo. Com poucos meses, seja por desejo dos pais ou por necessidade da mãe voltar ao trabalho após a ridícula licença maternidade de quatro meses, o aleitamento materno do bebê já é substituído por farinha láctea, leite em pó ou similares ainda piores.

Trabalhando em comunidades muito vulneráveis, eu me acostumei a ver a normalização das coisas mais absurdas. Crianças de um ano tomando refrigerante na mamadeira, crianças de menos de dois anos com acesso irrestrito a doces, salgadinhos e biscoitos recheados, almoçando e jantando macarrão instantâneo. Crianças maiores com dentes comprometidos em consequência do grande consumo de açúcar, adolescentes enfrentando adoecimentos típicos de pacientes adultos graças a uma alimentação destrutiva. Adultos hipertensos, diabéticos e obesos almoçando arroz, feijão, macarrão e batata frita.

Não é difícil perceber que, apesar de "democrática", a péssima alimentação a qual estamos expostos há décadas e cujo padrão repetimos e replicamos orgulhosos com nossos filhos encontra terreno fértil nas empobrecidas periferias das cidades brasileiras. É fato que alimentos de mentira, ultraprocessados, entupidos de sal, açúcar, gordura, estabilizante, aromatizante, corante, conservante estão presentes na alimentação de famílias de todas as classes, mas o estrago, certamente, será maior para os mais pobres.

A explicação está, em parte, na composição destes alimentos. Ricos em sal, açúcar e gordura, são produzidos a um custo muito baixo. São cruelmente mais acessíveis e é por isso que vemos trabalhadores braçais "escolhendo" ou "preferindo" almoçar um pacote de biscoito recheado que custa dois reais a pagar 20 reais em uma refeição decente em algumas regiões das grandes cidades. O biscoito aplaca a dor do estômago vazio e ainda permite que mais 18 reais cheguem em casa ao final do dia.

Além do baixo custo, tantos aditivos ajudam a  tornar os produto cada vez mais atrativos. A indústria acrescenta substâncias que nem são alimentos para provocar em seus desavisados consumidores cada vez mais prazer e dependência. Gostinho de baunilha, cheirinho de morango, textura crocante, sabores cada vez mais intensos, muito açúcar, muito sal, muita gordura. Tudo isso faz a gente querer  sempre mais. Ficamos dependentes desses estímulos intensos. Nosso paladar se acostuma e passa a achar a comida de verdade algo assim, meio sem graça.

Experimente comer um biscoito de banana fabricado pela indústria e depois morda a banana que você tem na cesta da cozinha. O gosto do biscoito é tantas vezes mais intenso que talvez você julgue que a natureza esqueceu de algum ingrediente.

Há ainda uma outra barreira enorme ao consumo de comida de verdade. Uma alimentação saudável, via de regra, requer tempo e mínima habilidade para ser preparada. Não temos nem um, nem outro. Saímos todos de casa antes do café da manhã e seguimos até a noite comendo na rua. Desembrulhamos mais que descascamos sem sequer nos darmos conta que estamos envenenando nossos corpos. Fazemos isso sorrindo e achamos graça pagar para ficarmos doentes.

Comida de verdade, especialmente os vegetais livres de agrotóxicos, são ainda muito caros e fora das possibilidades econômicas de grande parte da população. Enquanto não há um enfrentamento político dessas questões, já que muitos dos nossos políticos estão a serviço desta indústria e deste tipo de agricultura, seguimos adoecendo. Não são poucos os estudos que apontam a relação entre o aumento do consumo de ultraprocessados com o crescimento de doenças como o câncer, o diabetes e a hipertensão. Alguns relacionam a nossa alimentação a adoecimentos psíquicos como a depressão e a ansiedade.

Para problemas complexos, soluções complexas. Engana-se quem pensa que a solução virá de um despertar individual de cada família que assistiu a um programa de culinária saudável. Primeiro por que a maior parte da população pobre nem acesso a isto tem. Segundo que mudanças tão significativas demandam políticas públicas e um modelo mais saudável e sustentável de sociedade. Enquanto formos obrigados a trabalhar até a exaustão, sem ter tempo para cuidar da nossa alimentação, é difícil haver mudanças.

A ausência de uma regulação efetiva desta indústria que nos envenena lentamente e ainda faz propaganda disso na televisão é uma demonstração de sua força. O argumento de que há real necessidade do uso de agrotóxicos em larga escala para tornar possível a produção de alimentos para toda a sociedade também não resiste a uma análise mais crítica dos números da fome. Desperdício, monoculturas, danos monumentais ao meio ambiente com a criação de animais para consumo de carne, ovos e leite, propriedades gigantescas, agrotóxicos despejados de aviões, nada disso foi capaz de saciar a fome das pessoas. Afinal, não se trata da necessidade de produzir mais, é uma questão de acesso. Trata-se da construção de uma sociedade onde não seja normal ou aceitável que outro ser humano sinta fome enquanto eu me empanturro e jogue o resto da comida no lixo.

Há alguns meses venho orientando meus pacientes hipertensos, diabéticos, obesos. Falo com com os pais e mães das crianças que cuido, com adolescentes. Invisto um minutinho da consulta que seja para provocá-los e inspirá-los para uma alimentação mais caseira  e natural. Nunca tive tanto sucesso em promover saúde como agora. Homens e mulheres reduzindo o número de medicamentos para controle da pressão e da glicose, perdendo peso, reduzindo as crises e instabilizações das suas condições.Vejo famílias se propondo, apesar de toda a dificuldade, a preparar em casa seus alimentos e mudando hábitos de décadas.

É inegável que este despertar individual é válido, é legítimo e encantador, mas não exclui a necessidade de um enfrentamento sério deste que é um problema de saúde pública. Enquanto isso, passamos a vida a pagar caro por nosso adoecimento e, mais tarde, para recuperar nossa saúde, que aliás, não volta. É bom avisar.

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário