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Júlia Rocha

Por que, diabos, a polícia sobe o morro?

ECOA

22/11/2019 10h31

Hoje eu vou usar toda a minha cota de ingenuidade do mês de novembro para tentar responder a essa pergunta. Sim, porque eu e tantos no morro já sabemos a resposta, mas eu vou me fingir de sonsa, dizer que preciso pensar no assunto, senão, esse texto não sai.

Eu não sou especialista em segurança pública, não nasci ou cresci em uma favela, mas o dia a dia de trabalho nas comunidades vai, aos poucos, nos mostrando as profundezas, os porões do que, de fora, chamamos de garantia da ordem pública.

Eu sou médica de família: uma detetive metida a besta, que tem mania de ser radical. Ser radical é ir à raiz. Buscar a causa das coisas e agir para modificar o que está provocando dor, adoecimento e morte. Se, em breve teremos uma estação chuvosa e quente, começo, desde já, a orientar meus pacientes sobre a importância de checar a limpeza do quintal, evitar locais que acumulem água, estimular a vizinhança a fazer o mesmo, desentupir a calha do telhado, cobrar ações de limpeza da prefeitura, organizar mutirões na associação do bairro, colocar telas nas janelas das casas mais baixas, ter em casa um repelente que ajude a proteger a família (principalmente crianças e idosos), colocar uma tela sobre o berço do bebê. Espalhamos cartazes com os sintomas da dengue e com os sinais perigosos da doença, planejamos nossa agenda para receber os casos que vão chegar… Enfim, fazemos uma programação cuidadosa já esperando que a epidemia acontecerá.

Mesmo com tantas medidas, tanto planejamento, entra ano e sai ano, a gente perde pacientes, a gente vivencia situações caóticas nas unidades básicas, nas emergências, nos hospitais… Imagina se a gente não se planejasse? A gente sabe que uma epidemia como essa, com tantas mortes, inclusive, está intimamente relacionada com o desleixo estatal em relação às comunidades mais pobres. Tanto no que diz respeito à estrutura dos bairros como à rede de assistência à saúde dessas pessoas.

E o que isso tem a ver com a minha pergunta inicial? O que o mosquito tem a ver com a polícia? É que na minha "santa inocência" não me entra na cabeça a motivação de a polícia subir o morro. Mal comparando, eu fico me imaginando sobrevoando de helicóptero a comunidade onde eu trabalho com uma máquina de dispersar veneno. As pessoas lá embaixo gritando: "Pare, doutora! A senhora sabe que eu tenho um bebê recém-nascido! Esse veneno vai matá-lo!". E eu, do alto, respondendo cheia de certeza: "Mulher, estou fazendo isso para o seu bem! Se eu não jogar esse veneno, o mosquito pode picar vocês. Pode ser até que vocês adoeçam de dengue! E pode ser até que vocês morram disso!".

Depois, eu mostraria orgulhosa os dados, resultado da minha ofensiva contra a dengue! Zero mortes pela doença. Nenhum mosquito sobreviveu ao meu veneno! As pessoas que moram fora da favela me aplaudiriam. Aliás, elas sempre jogaram a culpa da epidemia da cidade inteira sobre a favela e suas casas de estrutura precária. Imaginem a cena!

Não há qualquer motivo para a polícia subir o morro. Não há. Ou melhor, há. Vai depender da motivação. Se a motivação for acabar com o tal tráfico de drogas, não há motivos, definitivamente. Se na favela não há fábrica de fuzis, não há vastas plantações de maconha, não há grandes laboratórios para refino das centenas de toneladas de cocaína, por que diabos a polícia sobe o morro?

A política de drogas brasileira é um engodo do tamanho de um elefante! E nós mordemos essa isca! Nos tornamos plateia para a nossa própria tragédia. Gastamos dinheiro público com uma das políticas mais ineficientes já propostas e executadas nestas terras, fortalecemos instituições ineficientes, damos poder a agentes corruptos, matamos pessoas inocentes, levamos pânico a comunidades inteiras, atiramos em crianças a caminho da escola, patrocinamos um genocídio e o resultado positivo é: nenhum!

O tráfico de drogas segue muito bem, obrigada! Os helicópteros e aviões dos verdadeiros donos das bocas seguem sobrevoando nossas cabeças. Quem quer usar droga usa, quem não quer não usa, como sempre foi! Quem quer comprar droga na farmácia compra, quem não quer não compra e seguimos alimentando nossa monumental hipocrisia enquanto o racismo estrutural mostra suas garras, encarcera e mata jovens negros e aniquila nossas esperanças de futuro.

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário