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Júlia Rocha

O silencioso, mas nem tanto, apartheid brasileiro

ECOA

29/11/2019 09h24

Era uma segunda feira quente e caótica como são todas as segundas feiras no pronto-atendimento público das periferias do país. Mesmo com a equipe trabalhando sem descanso, sempre há tumulto e longas esperas.

Josinei chegou às 9. Um trapo. Acompanhado de um outro funcionário da empresa onde trabalha. Aquele rosto inchado, maltratado, típico de quem abusa da bebida. Cheirava mal, coitado. Os dentes escuros, a pele oleosa, os cabelos crespos, bem escuros, a roupa gasta, puída, a botina suja de tinta e cimento.

"Bom dia, doutora. Eu sou engenheiro da empresa. Trabalho com o Josinei. Ele teve duas convulsões assim que começou o turno. Já é a quinta vez que isso acontece. Ele tem ficado mais em casa do que no trabalho."

"Bom dia,  Josinei. Como eu posso te ajudar?"

Sua resposta era confusa, a fala quase incompreensível, os movimentos ainda descoordenados. A convulsão o deixara assim. Os momentos seguintes àquele choque intenso e às fortes contrações são muito difíceis.

"Acho que não vou conseguir conversar com ele agora. Vou examiná-lo, pedir alguns exames, prescrever uma medicação que ele vai tomar pela veia e em mais ou menos duas horas eu vou reavaliá-lo, certo?"

E assim fizemos. Já era quase hora do almoço quando consegui chamá-lo novamente ao consultório. Foi quando aquele homem negro, pele retinta, cabelos muito crespos, me contou a sua história. Com sotaque de Salvador e um poder de síntese invejável.

"Eu bebo desde 9 anos, dotôra. Meu pai dizia: beba isso pra virar hômi."

Josinei não se lembrava de nenhuma passagem de sua vida que não envolvesse a bebida. Trabalhando desde os 6 anos, cresceu subjugado a tantas violências que minha mão sobre sua barriga a tocar seu fígado imenso e adoecido era um carinho que lhe arrancou sorriso.

"Tenho filha e neto. Moram em Salvador. Às vezes penso em voltar. Pobre lá, pobre aqui… Lá, pelo menos tenho eles."

As convulsões apareceram há 3 meses. Aqueles eram os primeiros exames que Josinei fazia. Não conseguiu consulta em lugar nenhum. Não fez tomografia, não tomou remédio. Nada. Estava entregue à sorte das violentas correntes elétricas que vez ou outra tomavam o seu cérebro e o jogavam ao chão.

João Paulo era o nome do engenheiro. Acompanhou nossa conversa do alto dos seus muitos privilégios. Era um homem limpo, perfumado, cabelo bem cortado, penteado, barba feita. Roupa limpa e bem passada. Por muitos momentos, pegou o celular para não ter que mergulhar na miséria de Josinei.

Fim da consulta, o homem branco me agradece enquanto abre a porta e o homem negro se levanta.

"Muito obrigada, dona." E me abraça. Sujo, mal cheiroso e grato.

Eu, sem saber o que fazer, retribuí.

"Se cuida, irmão."

"Vou voltar pra minha família. Quando a gente tá perto dos nossos, a gente tá melhor."

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário