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Júlia Rocha

Criança e consumo. Afinal, o que nossos filhos querem de nós?

ECOA

13/12/2019 11h49

Sinos, luzes, música, decoração especial. Chegou dezembro e, com ele, o incentivo ao consumo desenfreado. Se você tem filhos, juízo e pouco dinheiro, deve estar inventando maneiras de passar distante da confusão dos centros de comércio da cidade. Eu estou.

Minha pequena, com quase 3 anos, está descobrindo as compras agora. A consciência de que ela pode ter ou levar para a casa as coisas que vê em uma vitrine chegou recentemente.

Até bem pouco tempo, desenvolvi uma estratégia inusitada para passar ilesa pelas lojas que surgiam no caminho. A pequena avistava uma vitrine e as exclamações começavam:

"Olha, mamãe! Que lindo aquele carrinho! Olha aquela boneca! A bola!"

Eu respondia sorridente:

"Lindos, mesmo, filha! Muito lindos!"

E passávamos sem qualquer reclamação ou reivindicação de compra. Ela não sabia que aqueles objetos poderiam "ser dela". Não tinha consciência de que, em troca de algum dinheiro, poderia levá-los todos para o seu quarto. Ainda bem!

Confesso que vivi tranquila e serena por todo esse tempo, até que, recentemente, escutei o primeiro: "Você compra pra mim, mamãe? Por favor?"

O estilo de vida que adotamos por aqui é simples. Antes de qualquer compra, há uma reflexão, mínima que seja, sobre a real necessidade daquela aquisição, sobre se não há outros objetos em casa que satisfaçam àquela necessidade, se é a melhor hora de comprar e por aí vai.

Se repararmos bem (ou nem tão bem assim), as pressões por consumo e compra são inúmeras e muito diversas. Decidir viver de forma desacelerada, simples e sem consumir o planeta inteiro em uma semana tem seus desafios. Para quem tem criança em casa, o caminho pode ser ainda mais difícil.

O que nos induz à irracionalidade do comprar desmedido é, por vezes, sutil. Há um acordo social que mora na esfera do não dito que constrange qualquer um que se  movimente em direção a um hábito de consumo mais comedido. 

Para remediados da classe média não se deve repetir roupa. O carro velho é motivo de vergonha. Reutilizar a embalagem dos alimentos é o fim dos tempos. Usar qualquer coisa até que se acabe, se esgote e não seja mais possível aproveitar nada é aceitar o rótulo de mão de vaca e muquirana sem a menor chance de reconsideração.

E, quando se decide educar as crianças para um jeito simples de viver, é preciso estar preparado para o que vem dos outros (se isso, de fato, lhe importar).

Quando se retira do cotidiano um hábito tão consolidado como o comprar desmedido, pode ser necessário que algo preencha o vazio que fica. Imagine não comprar presentes para os filhos num contexto onde isso é visto como uma heresia, uma maldade com a criança.

O coração precisa estar muito tranquilo. Os sentimentos precisam estar bem resolvidos para que a avalanche de críticas não nos convença a entrar na primeira loja de brinquedos e comprar mais um, ou dois ou três itens que se somarão aos dez, vinte ou trinta que nosso filho já tem em casa e que, em alguns meses, se juntarão às montanhas de plástico do lixão da cidade.

Sim, porque é importante lembrar que não basta ter dinheiro. É preciso ter planeta disponível para ser consumido, coisa que nós, definitivamente, não temos.

Recentemente, eu e uma amiga começamos a fazer um jogo para dar de presente para a minha pequena. Um jogo com letras, números e notas musicais. Gastamos papel, caneta colorida e plastificamos cada cartão. Sem querer esperar dia de festa (por aqui, qualquer dia é de festa e de presentear), fomos todos para o chão da sala estrear a novidade. Sucesso total!

"P de Papai! M de Mamãe! D de Dindinha! T de Theo, L de Laís! N de Nicolas! E de Edu!"

A lista dos coleguinhas da escola ficou pequena para tanta vontade de aprender. O presente que demos não foi papel, plástico e umas letras desenhadas com capricho pela dindinha. O presente foi o tempo. A disposição de sentar no chão e contemplá-la descobrindo o mundo. Tempo e disposição que não teríamos se tivéssemos que trabalhar enlouquecidamente para bancar desejos e impulsos de consumo. Não há preço possível para isso. Não importa o que os outros falem.

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário