Júlia Rocha http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário. Mon, 23 Mar 2020 07:00:41 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O avesso do caos: Quando tudo passar, voltaremos a ser quem éramos? http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/03/23/o-avesso-do-caos-quando-tudo-passar-voltaremos-a-ser-quem-eramos/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/03/23/o-avesso-do-caos-quando-tudo-passar-voltaremos-a-ser-quem-eramos/#respond Mon, 23 Mar 2020 07:00:41 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=196 O momento atual é uma esquina da história. Quem procura na memória não encontra precedentes para o que vivemos nas últimas semanas ou meses. A overdose de informações, a intensa exposição do tema no rádio, na TV e na internet mudaram a nossa capacidade de perceber e de intuir sobre a realidade. Olhamos para os números mas não enxergamos o que há para além deles. Cinco mortos, seis, sete, oito. Se fossem dois, três ou trinta estaríamos igualmente alarmados. Os últimos dias levaram grande parte da nossa racionalidade.

Atualizamos a situação com olhos fixos nas múltiplas telas. Repetimos rituais de limpeza e de busca por fontes seguras de notícias. Sentimos saudade dos pais e avós que estão abrigados no bairro ao lado. Visitamos ressabiados o mercado do bairro cuidando para não encostar desnecessariamente em nada. Convenhamos, é impossível sair mentalmente ileso do caos global instalado e da vivência tão intensa e absoluta do que mais nos angustia em dias como estes: a INCERTEZA.

Não estamos certos de que os cuidados que estamos tomando sejam suficientes. Saímos rapidamente de casa para reabastecer a geladeira e ao voltarmos somos inevitavelmente tomados pelo medo de expor nossos familiares a uma possível contaminação. Nos xingamos uns aos outros por atitudes aparentemente inofensivas como esbarrar a roupa que foi na rua no móvel da entrada da casa. Questionamos internamente os protocolos sugeridos pelas entidades médicas, pelos gestores públicos e, aí, lavar as mãos com água e sabão vira usar álcool gel por duas ou três vezes, tomar banho, colocar a roupa suja cuidadosamente na máquina, lavá-la com água bem quente e muito sabão.

Estourando a bolha de sabão e álcool gel da classe média, avistamos ao longe, no alto dos morros nossos irmãos mais vulneráveis.Descobrimos que para metade da população do país, ficar em casa, ter acesso à água limpa e receber notícias de fonte relativamente segura já é um luxo sem tamanho.

Somos esta nação. Somos este grupo que se identifica de forma única como povo brasileiro, mas, em vez de tentarmos sobreviver de forma coesa, nos tornamos esta aberração que se previne usando as evidências científicas pela metade. No asfalto, milhões de seres humanos confinados, escondidos atrás de barricadas de antissépticos. Na favela, milhões de seres humanos pobres, em moradias precárias, convivendo com famílias numerosas, em barracos pequenos, mal ventilados, sem água limpa ou saneamento básico.

São estes pobres jogados à própria sorte, que estão nos vendendo álcool nas farmácias, abastecendo nossos carros nos postos de gasolina, entregando nossas pizzas no nosso confinamento. Ou seja, meu amor, ou nos protegemos como grupo, salvando primeiro as pessoas e depois a economia, ou estaremos todos em risco.

A conta da desigualdade vai chegar também aos condomínios. Os capitães da meritocracia, que acham que negros e negras, descendentes de africanos escravizados por 300 anos no Brasil, moram no alto dos morros e vivem uma vida precarizada por que não se esforçaram o suficiente ou por que escolheram estes lugares para reduzirem seus custos, também receberão seus boletos.

Quis a natureza e a evolução da espécie que o vírus se espalhasse democraticamente. Mesmo sem conhecer pessoalmente seus hospedeiros é possível intuir quem está mais apto a sobreviver a esta infecção. De um lado, temos um Brasil que vai ao médico sempre que precisa, que come bem, que tem lazer, que trabalha pouco, que se exercita, que viaja para a Europa, que pode trabalhar em casa. Do outro, temos um Brasil que trabalha muito, em ambientes insalubres, que enfrenta transporte público precário, que come mal. O estrago é maior quanto maior a vulnerabilidade física de quem se infecta. Seguimos irracionais, contabilizando cada novo caso, mesmo sabendo que os números oficiais, há muito, não são mais confiáveis.

O planeta agradece com ar e água mais limpos a desaceleração global. Estamos em pleno trabalho de parto. Como não poderia deixar de ser, parto é doloroso, difícil e, por vezes, longo. Se durar pouco, esse processo pode não gerar reflexão suficiente. Se durar muito, os estragos podem gerar o nascimento de um mundo fragilizado, mas se durar tempo suficiente para reflexão e mudança interior, o planeta pode parir um mundo novo, saudável, melhor e mais justo.

Não se iludam. Não depende de cada um de nós. Deixemos o individualismo infantil no passado. É hora de organização, solidariedade e senso de coletividade. É hora de parirmos sistemas de saúde públicos fortes, eficientes. É hora de respeitar direitos humanos para todos. É hora de parirmos sistemas públicos de educação capazes de formar cidadão críticos, criativos e conscientes. É hora de reduzirmos produção e consumo, e distribuir de forma igualitária e justa as riquezas deste planeta.

Quem fará isso? Prefiro a resposta de Assata Shakur:

“Ninguém no mundo, ninguém na história, nunca conseguiu a liberdade apelando para o senso moral de seu opressor.”

Pretas e pretos, nações indígenas, trabalhadores, não esperemos muito do que não vier de nós.

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Mais que cancelar Drauzio, querem justificar o próprio ódio http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/03/09/mais-que-cancelar-drauzio-querem-justificar-o-proprio-odio/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/03/09/mais-que-cancelar-drauzio-querem-justificar-o-proprio-odio/#respond Mon, 09 Mar 2020 16:01:25 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=179 Por que a internet massacra Drauzio e aplaude Bruno?

Há pouco mais de uma semana, o médico Drauzio Varella entrevistou uma detenta de nome Suzi num presídio da cidade de Guarulhos. A entrevista era parte de uma matéria sobre as vivências de mulheres trans em presídios masculinos. Num momento da entrevista, Drauzio, conhecedor das mazelas do sistema carcerário brasileiro por ter dedicado anos da sua vida profissional a cuidar de pessoas encarceradas, oferece a esta mulher um abraço.

Um parêntese: isso diz sobre Drauzio. O que veio depois fala sobre o que somos.

Nenhum médico em sã consciência, ao se colocar diante de alguém em situação de encarceramento ou com familiar encarcerado pergunta a esta pessoa qual foi o crime que ela cometeu. Drauzio estava ali como um médico. Ele não é repórter. É cientista. Estava a documentar as vivências destas mulheres. Não cabia a ele interrogar ou investigar. Isso nos compromete o julgamento como profissionais de saúde.

Imagine receber uma mulher em intenso sofrimento, carregada por familiares, chorando por que seu filho foi preso e perguntá-la o que foi que ele fez. Acaso a resposta vai interferir no cuidado que vamos prestar a ela? Há um crime aceitável e outro inaceitável para a prática médica? E é por esta régua que eu vou medir o tanto de humanidade que vou devotar àquela mulher durante o atendimento? Se seu filho matou uma criança, ela se torna menos merecedora da minha humanidade e da minha habilidade como profissional?

E se o próprio criminoso me procura buscando ajuda, devo eu questioná-lo para saber se o crime que o fez estar ali está na minha lista dos que merecem ser relevados?

Especulou-se, após a publicação da matéria, que a detenta teria sido autora de um crime bárbaro contra uma criança. Estuprado, torturado, matado. Compartilho sinceramente da dor imensa desta família. Aliás, não consigo imaginar a tragédia sem medidas que é viver um momento como esse, mas, ainda assim, acho importante ir em busca de outra reflexão.

Há dez anos, um homem e seus amigos mataram, esquartejaram e deram aos cachorros o corpo de uma mulher que inclusive era mãe de seu filho. Recentemente este homem frequentou as manchetes dos jornais anunciando sua volta ao futebol. Que sintomático, não? Para este ex-atleta, comprovadamente feminicida, devotamos admiração e muitos pedidos de selfies.

Afinal, qual a diferença entre Bruno e Suzi? Drauzio não sabia de seu crime ao abraçá-la, mas e se soubesse? Os homens e mulheres que frequentemente se espremem pedindo por uma foto com Bruno sabiam. Seria nossa transfobia maior que a nossa capacidade de se compadecer com a dor de uma mãe que perde a filha assassinada? Nossa sede de vingança e revanchismo diante do crime de Suzi não nos moveu para buscar justiça por Elisa Samúdio, sua mãe e seu filho? Ou será que, no fundo, achamos que, diferentemente da vítima de Suzi, Elisa mereceu morrer?

Não se aplaude, não se glamoriza, nem se minimiza nenhum crime. Nem os cometidos contra mulheres. Suzi, sendo ela quem for, não muda a realidade de vulnerabilidade extrema da população trans brasileira. Mulheres trans têm expectativa de vida que é a metade da população geral. Extrapole Suzi. Ela está a cumprir sua pena. Até que ponto nossa revolta é reflexo de um desejo de justiça ou é tradução do ódio que agora direcionamos a ela. Queremos matá-la? Por que apontamos para Suzi e poupamos Bruno?

Será que, no fundo, estamos buscando meios de atacar uma luta maior? Uma luta de milhões de mulheres por direitos? Uma luta feminista, antipunitivista? Precisamos destituir Suzi de qualquer humanidade para, enfim, deslegitimar tudo que uma mulher trans e negra representa?

Será?

Leia mais:

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Sífilis: mesmo que você nunca tenha sentido nada, o melhor é se testar http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/03/06/sifilis-mesmo-que-voce-nunca-tenha-sentido-nada-o-melhor-e-se-testar/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/03/06/sifilis-mesmo-que-voce-nunca-tenha-sentido-nada-o-melhor-e-se-testar/#respond Fri, 06 Mar 2020 14:57:09 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=174 Desde que passou a ser uma doença de notificação obrigatória, em 2010, ou seja, desde que a comunicação de cada novo caso passou a ser uma obrigação rotineira do profissional que fez o diagnóstico, o número de casos de sífilis não parou de crescer no Brasil. E isso se repete em muitos outros países. De crianças infectadas dentro da barriga da mãe a mulheres infectadas por seus parceiros, a doença se fez democrática.

Uma infecção sexualmente transmissível que pode passar despercebida por décadas até que um estrago maior esteja instalado. Sífilis é isso. Sua evolução acontece em fases, e, principalmente na mulher as primeiras manifestações podem passar despercebidas ou podem ser negligenciadas até por profissionais da saúde com um olhar menos treinado ou menos atento a estes sintomas.

O Treponema, agente causador da infecção, é transmitido por vias sexuais e pode demorar de 10 dias até 3 meses para provocar os primeiros sintomas. A depender do comportamento sexual da pessoa infectada, isso é tempo suficiente para espalhar a bactéria sem nem mesmo ter se dado conta da própria condição.

Além disso, a ferida que surge no local da entrada da bactéria (boca, região perianal, pênis, vulva, canal vaginal) não dói e se fecha sozinha. Ou seja, após gerar grande preocupação para a pessoa, vai-se embora. O paciente se sente aliviado, não procura ajuda e segue infectando outras pessoas. Isso sem falar nas lesões que aparecem em locais onde não são vistas, principalmente em mulheres. Dentro do canal vaginal, só por um golpe de sorte é que elas serão percebidas. Isso, por que, por algum outro motivo a mulher precisaria passar por exame ginecológico neste período curto em que a ferida estivesse ativa.

Muitas dessas peculiaridades da doença ajudam a explicar parte de seu crescimento, mas não a totalidade. A doença vem crescendo de forma significativa na população mais jovem do país o que torna a comunicação com este público uma estratégia imprescindível para o controle da doença. Seria valoroso que pudéssemos informar os jovens de forma intensiva nos locais onde eles se concentram. Nas escolas, por exemplo. Mas Educação Sexual nas não parece ser uma prioridade.

Ainda hoje, a sífilis, principalmente em seus estágios mais avançados, é uma doença de pessoas pobres. É óbvio que há as exceções a esta regra, mas as estatísticas evidenciam isso. Quem mais sofre são pessoas com acesso ruim aos serviços de saúde e educação, com nível cultural baixo. Isso explica o fato de uma doença de evolução lenta, com tratamento eficiente e barato se espalhar de forma tão intensa e semear sequelas graves, principalmente entre quem está socialmente vulnerável.

Se os primeiros sintomas somem sem tratamento e a pessoa infectada se despreocupa por que não sente nada que a incomode, o avançar da doença pode ser catastrófico. Com décadas de atraso no diagnóstico, muitas vezes ocorre desenvolvimento de lesões neurológicas e cardíacas que podem deteriorar a funcionalidade do sujeito e trazer prejuízos ao paciente, à família e à sociedade, já que o custo do tratamento, que antes era de poucos reais passa a ser muito maior.

As características da sífilis e de sua evolução deveriam ser suficientes para que os profissionais de saúde incentivassem seus pacientes a realizarem a testagem e a se protegerem com preservativo sempre. Não é o que ocorre. É comum que o diagnóstico seja feito já com inúmeros danos estabelecidos. Sem falar que, na presença da sífilis, a pessoa infectada fica mais vulnerável inclusive à adquirir outras infecções, como o HIV, por exemplo

Há uma preocupação especial com a testagem periódica de mulheres gestantes já que a transmissão para o bebê pode acarretar sequelas graves. Aborto, parto prematuro e o adoecimento do bebê recém nascido são algumas delas.

Não se pode brincar com a sífilis. Se você já se expôs em uma relação sexual desprotegida, procure uma unidade de saúde e faça o teste. Se for diagnosticado, comunique suas parcerias sexuais. Todos e todas devem receber tratamento e acompanhamento com profissional capacitado para isto.

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Mulher, mulher, envelhecer é um pecado http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/02/28/mulher-mulher-envelhecer-e-um-pecado/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/02/28/mulher-mulher-envelhecer-e-um-pecado/#respond Fri, 28 Feb 2020 11:58:11 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=166 Mulher, mulher, envelhecer é um pecado.

Mortal, inclusive. E literalmente, muitas vezes. Porque quando não mata de desgosto e solidão, mata no pós operatório de uma cirurgia desnecessária para levantar alguma parte do corpo com a finalidade de que se pareça ter dez anos a menos.

Já ouço daqui o ranger dos dentes e as reações apaixonadas dos que defendem com a própria vida o direito de se esticar até o fim da última ruga, da última pelanquinha. Nada pessoal, gente! Minha questão aqui é outra. Eu só quero pensar mais profundamente sobre isso. Sair da superfície, da derme, chegar às camadas mais internas da dor que se tornou envelhecer. Afinal, o que nos motiva a entregar nosso corpo para ser consertado, corrigido e adequado por procedimentos cirúrgicos que representam, sim, riscos relevantes à saúde física e mental?

Que incômodo tamanho é esse que faz tantas mulheres deixarem suas famílias em casa e caminharem saudáveis até um bloco cirúrgico para encarar sem questionamentos longas e invasivas intervenções, pós-operatórios frequentemente dolorosos e incapacitantes para se parecerem com as mulheres que elas já não são mais.

Algo nos fez odiar habitar nossos corpos envelhecidos. Nem nossa vulva escapou da varinha mágica padronizadora dos profissionais da “beleza”. O padrão é ser jovem. Para tanto, apaguemos as marcas de tudo que denuncia que já vivemos muito. 

Você já ouviu falar sobre discriminação etária ou etarismo? Basicamente, etarismo é a discriminação de pessoas baseada na idade. Mesmo que você nunca tenha ouvido esta palavra antes, certamente já vivenciou situações em que esta discriminação se fez presente. Numa seleção para um emprego, na escolha de quem seria demitido, na ideia previamente posta de que pessoas mais velhas são fisicamente incapazes, improdutivas, e por aí vai.

Para além do impacto na carreira das mulheres, a discriminação etária também impacta nossos afetos e nossa autoestima.

Se você, leitor, for um homem de meia idade. Relaxe. Nada disso serve pra você. Homem envelhecendo é puro charme. Os cabelos grisalhos são a marca da sedução. As rugas são gentilmente relevadas, a barriguinha saliente vira sinal de que aproveitou as coisas boas da vida. Contudo, se você for uma mulher, prepare-se.

Pra quem ainda não entendeu ou acha que eu estou exagerando, experimente deixar a natureza e o tempo agirem soberana e naturalmente sobre o seu corpo, sua pele, seus cabelos. Deixe-os naturalmente brancos. O rosto, permita-o enrugar-se por entre olhos e orelhas. Deixe os lábios naturalmente mais finos e ligeiramente caídos, acompanhando peitos que amamentaram, barrigas que gestaram, bundas que rebolaram por tantos e tantos carnavais. Permita-se viver sem se importar com nada disso, sem se violentar em procedimentos estéticos e PREPARE-SE. Espere a metralhadora do machismo a te fuzilar com uma rajada de tiros na sua cara sem botox ou no seu peito sem silicone.

Se você for rica, para ser aceita velha, terá como parte das suas obrigações diárias impedir que as pessoas percebam que, pra você também, o tempo passou. Cirurgias, procedimentos dolorosos e invasivos, cuidados longos e cansativos, maquiagem, extenuantes aulas na academia. Abrace a sua sina ou aguente firme o que virá.

Não importa a classe social. Mais ou menos intensamente, todas nos mulheres viveremos a discriminação etária, seja no mundo corporativo, no convívio social ou nas vivências afetivas. Mulheres jovens, cada vez mais jovens, agora são troféus de homens de meia idade ou idosos recém separados. Há uma legião de mulheres com seus 40 ou 50 anos que se separou ou que são solteiras e que simplesmente não encontram um parceiro interessado em construir uma relação de afeto. Pelo contrário, homens na casa dos 70 estampam capas de jornais e revistas com suas namoradas ou recém-esposas de 25 ou 30.

O marketing tem um papel essencial na venda deste imaginário quase infantil da mulher e da sua aparência. Todos os dias, todos os minutos, somos bombardeados com imagens de meninas cada vez mais jovens nas propagandas de quase tudo. Cria-se um desejo de ser a jovem que nunca seremos. E a chave é nunca ser mesmo. É importantíssimo que o objetivo a ser alcançado seja explicitamente impossível. Porque, para quem vende o nosso sonhado retorno aos tempos de pele lisa, barriga sem flacidez, sem marcas, a bunda dura e sem celulite, aos cabelos naturalmente coloridos, o importante não é que a gente chegue a algum lugar ou conquiste um objetivo. O importante é que a gente não pare de buscar.

Ainda bem que há outros caminhos. Vou por esses.

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Oito coisas que você precisa saber sobre ISTs antes do Carnaval http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/02/17/oito-coisas-que-voce-precisa-saber-sobre-ists-antes-do-carnaval/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/02/17/oito-coisas-que-voce-precisa-saber-sobre-ists-antes-do-carnaval/#respond Mon, 17 Feb 2020 14:55:11 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=156 Querida leitora, querido leitor, tome juízo! O carnaval acaba na quarta-feira de cinzas, mas, sua vida, não. Sem moralismos, sem proibições, bora conversar sério sobre os cuidados em relação às IST’s?

PRIMEIRA DICA: parece óbvio mas pra muita gente não é. Pessoas com aparência saudável, sem qualquer sintoma, podem estar contaminadas por infecções transmissíveis através de relação sexual. Sem nenhuma ferida na região íntima, sem corrimento, seja na uretra do homem, seja na vagina da mulher, sem cheiro estranho, sem ínguas na virilha, sem emagrecimento… nada. Nadinha! Às vezes a pessoa nem sabe que está infectada e por isso nem procurou tratamento, ainda. Ou seja, não dá pra abrir mão do preservativo nunca.

SEGUNDA DICA: não fique de brincadeira nas preliminares sem preservativo. Sabe aquela escapolida com penetração? “Ah, só um pouquinho sem camisinha… depois eu coloco.” Não brinca com isso não! Algumas pessoas, principalmente aquela que não sabem que estão infectadas e que ainda não buscaram tratamento, podem estar com cargas virais muito altas e isso facilita a transmissão. Numa escapolida dessas de 30 segundos, você arruma um problema sério para sua saúde para o resto da sua vida.

TERCEIRA DICA: camisinha não te protege de tudo, amor. É pra usar? Óbvio! Claro! Transar sem camisinha, só se você for doida, doido, doide! Porém, todavia, contudo, saiba que camisinha não vai te proteger, por exemplo, do contato pele a pele da região que fica próxima ao pênis, a vulva, ao ânus e até a boca. É comum, por exemplo, surgirem lesões por HPV nestas regiões de contato.

QUARTA DICA: caso você se exponha em uma relação sexual desprotegida, procure imediatamente uma unidade de saúde e informe o ocorrido. Um profissional de saúde avaliará se você tem indicação de receber medicamentos para evitar uma possível infecção. Trata-se de um protocolo de profilaxia pós exposição, ou seja, um arsenal terapêutico para evitar que você se infecte e adoeça mesmo tendo sido exposto a algum agente causador de doença. Lembrando que é uma abordagem longa (o uso da medicação dura em torno de 30 dias) e costuma causar efeitos colaterais diversos. Alguns pacientes nem conseguem completar o ciclo de medicamentos de tão intensos que podem ser esses efeitos colaterais. Ou seja, não é pra você sair desprotegido por aí, contando que tem um comprimidinho que vai salvar sua saúde depois.

QUINTA DICA: depois que a pessoa tomou umas bebidinhas, o juízo vai-se embora. A coragem e a falta de noção aumetam consideravelmente e a pessoa nem lembra que existe camisinha. Você fique esperta, esperto, esperte! Não arrisque sua saúde. Algumas infecções sexualmente transmissíveis trazem consequências que serão permanentes, até o fim da vida!

SEXTA DICA: camisinha não é um bom método contraceptivo. Ela tem um índice de falha considerável. Sendo assim, além de usar camisinha para se proteger de ISTs, mantenha o uso do seu método anticoncepcional. Lembrando que tanto a camisinha feminina como a masculina estão disponível nas unidades básicas de saúde do SUS.

SÉTIMA DICA: esta é especialmente para mulheres. Bicha, cuidado! Cuidado com o cara que você acabou de conhecer ( e, às vezes, até com aquele que você já conhece mas que vai aproveitar de algum momento de vulnerabilidade para abusar ou te violentar). Talvez não seja uma boa ideia ficar sozinha com alguém num lugar ermo. Esteja sempre na companhia de mais pessoas. Se você decidir beber, redobre o cuidado. Combine com uma amiga que não bebe para que ela te ajude caso alguma situação potencialmente perigosa aconteça. Não perca sua turma de amigos de vista.

OITAVA DICA: não aceite bebida de ninguém! A gente ouve isso toda hora, mas na hora que chega alguém oferecendo, a gente esquece. Gente! 2020! Essa já é velha! A turma do mal também pula carnaval. O cara te dá uma bebida com remédio pra dormir, você toma e quando acorda, já foi estuprada e nem viu. Se esta ou outra violência te acontecer, procure um hospital imediatamente para receber medicações e apoio. E denuncie nas delegacias da mulher.

No mais, juízo! Bom carnaval e até a próxima coluna!

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Creusa nunca irá à Disney. Mas Creusa quer ir à Disney? http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/02/14/creusa-nunca-ira-a-disney-mas-creusa-quer-ir-a-disney/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/02/14/creusa-nunca-ira-a-disney-mas-creusa-quer-ir-a-disney/#respond Fri, 14 Feb 2020 12:13:38 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=151 Seu Guedes é um cara cruel. Seu Guedes, às vezes, fala coisas que tocam a perversidade. Mas, um mérito nós não podemos tirar dele. Seu Guedes é sincero. Sincerão, sabe? Tipo aquele tio que fala que gostava mais dos anos 90, quando ele podia fazer piada de preto e de viado sem ser incomodado pela sobrinha milituda feminista-antirracista.

Pois então, Seu Guedes parou lá. Nos anos 90. Se tornou aquele senhor idoso cuja única característica que traz para ele os holofotes é ser o chatão que ninguém quer contrariar na mesa do almoço de domingo pra não sair briga até o fim do pavê que a esposa dele fez de sobremesa. Um tipo insosso, mas que acha graça e se vangloria de não ter qualquer filtro entre o cérebro e a língua. Aquele que pensa e fala. Na lata. Sem freio! Pensa merda. Fala merda. Assim, no automático. Pois então… receita explosiva. É inevitável. Toda hora vai escorrer veneno.

O Seu Guedes podia comemorar o dólar a 4 e 35 apenas fingindo que para a indústria brasileira isso vai significar mais exportação, mais crescimento, mas tio Guedes não aguenta. É mais forte que ele, coitado! O racismo e o ódio de classes são tão grandes que escorrem pelo canto da boca. Escapam entre os dentes. E quando o Seu Guedes percebe, ops:

“Empregada doméstica indo pra Disney, como assim?!”

Ôh, Seu Guedes, desce daí! Em que país você vive? Empregada doméstica tá lá preocupada com preço do dólar por causa de Disney? Que mané Disney, o que! Isso é muito classe média branca para o gosto delas. Que homem sem rumo, gente! Arruma uma bússola pra ele.

O seu Guedes entende (e olhe lá!) de números. Ele não entende de mais nada além disto. A questão é que são os números e o que eles representam que erguem as barreiras entre ricos e pobres, pretos e brancos. São os números e suas barreiras invisíveis que colocam na ordem do impossível um homem negro, favelado chegar à universidade, conseguir um emprego decente, comprar uma casa boa, distante da margem do rio que enche e leva tudo. É disso que ele nem quer ouvir falar. Pro Seu Guedes, tanto faz se a chuva cai pra cima ou pra baixo. Não sendo ele e sua patota a sujar o pé no barro…

O Seu Guedes esquece que números representam a condição de vida das pessoas. Ou melhor, ele não esquece. Ele sabe. E sabe bem. A questão é que Guedes, o cruel, está a serviço de quem vive da exploração, da submissão, da falta de opção destas empregadas domésticas e de todos os trabalhadores. Desde os decadentes da classe média, que gostam de comemorar que o preço da faxina caiu e que agora dá pra pagar 70 reais para uma mulher negra qualquer limpar o cocô agarrado no seu vaso sanitário porco, do seu banheiro porco, cujo ralo do chuveiro tá cheio de cabelo, por que a classe média brasileira não desenvolveu esta habilidade de limpar o ralo do banheiro, bando de escravocrata ressentido que não tira o prato da mesa depois do almoço, até os multibilionários que enxergam essas mesmas empregadas e os outros trabalhadores como números e que juntam mais outros bilhões às custas da miséria e da morte alheias.

Guedes, o cruel, se parasse uma única vez na vida para ouvir sua empregada, saberia que ela está defecando pra Orlando, Miami ou qualquer outro sonho branco/classe média que ele quer manter como exclusividade da sua casta. Saberia que o que uma empregada doméstica quer é ter oportunidade, para si e para os seus filhos, de estudar e poder escolher a profissão que querem ter. Por que ninguém sonha em ser empregada doméstica, Seu Guedes. Elas aceitam enquanto a classe trabalhadora ainda não se uniu de forma eficiente para te tirar daí.

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Quem transa e quem goza no Brasil de Damares e Bolsonaro? http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/02/07/quem-transa-e-quem-goza-no-brasil-de-damares-e-bolsonaro/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/02/07/quem-transa-e-quem-goza-no-brasil-de-damares-e-bolsonaro/#respond Fri, 07 Feb 2020 14:32:39 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=141 Há que se levar a vida com alguma dose de humor para não sucumbir ao ódio destes tempos, mas esse texto será dedicado a um assunto sério. Sexo. Sim, vuco-vuco. Um amorzinho de leve. Uma fugidinha no meio da tarde pra namorar no banco de trás do carro no escurinho do estacionamento. Uma rapidinha no banheiro com o seu arroba. Ai que delícia! Tem assunto mais sério que esse?

Subiu um fogo aqui!

Segurem vossas ondas de calor e desejo, caras leitoras e leitores e leiam este texto cheio de pecado e desejo até o fim.

Já parou pra pensar em quantas vezes discutimos temáticas relacionadas ao nosso assanhamento, nossa libido, nossa sexualidade de forma pública e inspirados por ações deste governo? É sobre isso que a gente precisa conversar. Damares, Bolsonaro e outros deles estão usando o poder político para controlar corpos, desejos e subjetividades. Parece engraçado, mas só parece. Esta é uma receita velha de governos autoritários, e a intenção não é só causar polêmica ou fazer cortina de fumaça. É decidir quem vive e quem morre.

Esta semana, Jair disse que pessoas com HIV são dispendiosas para todos. Suas falas sobre os pacientes que recebem tratamento para HIV e AIDS na rede pública são sempre controversas. Parece que ele pensa que não se pode punir os “brasileiros de bem”, que, neste caso, são aqueles que não se infectaram com HIV, fazendo com que eles paguem com seus impostos o tratamento de pessoas que se infectaram por serem promíscuas ou principalmente por serem homossexuais.

Observe. Seu Jair nunca falou que deveríamos deixar de prestar assistência aos diabéticos que não seguem a dieta, que decidiram que vão seguir comendo doces, hambúrgueres, pizzas, macarrão ou que decidiram não usar os remédios corretamente. Seu Jair nunca disse para que deixássemos de atender os pacientes hipertensos que comem churrasco salgado no final de semana, regado a muita cerveja. Seu Jair não está preocupado com o custo do tratamento das pessoas com HIV e AIDS para o bolso do “””cidadão de bem”””. Se assim fosse, ele também diria que os pacientes que não se implicam em seus tratamentos deveriam bancá-los. Jair quer mais. Quer controlar o sexo. Quer controlar o corpo. Jair quer exercer BIOPODER. Michel Foucault mandou um abraço!

Enfraquecendo políticas públicas que garantem cuidado a saúde de um grupo de pessoas, o governante quer matar. E ele quer matar o hipertenso? O diabético? O obeso? Não. Aqui, quem merece morrer são os gays, os ditos “promíscuos”, as mulheres “de vida fácil” ou as mulheres “livres”.

Quem mandou transar? Quem mandou não ser casada, monogâmica, submissa ao marido? (Como se esta condição protegesse alguém de se infectar). Quem mandou ser gay? Quem mandou pular Carnaval? Quem mandou transar na adolescência? Quem mandou exercer autonomia sobre o próprio corpo? Pegou doença por que quis. Agora banque seu tratamento.

Agora, volte algumas casas no jogo de tabuleiro dos poderosos e lembre-se:

1- Proibição da inserção de DIU por enfermeiros dificultando o acesso das mulheres a anticoncepcionais eficientes

2- Congelamento dos investimentos em saúde e educação

3- Sucateamento das políticas que levavam educação sexual para as escolas. Mais gestações em adolescentes (pobres) e infecções sexualmente transmissíveis.

Resultado: perpetuação de ciclos de pobreza, meninas jovens grávidas, abandonando escola, cuidando sozinhas de seus filhos, sujeitando-se a qualquer subemprego para sobreviver. Some-se à isso as incontáveis perdas de direitos trabalhistas, a desigualdade… É tudo amarradinho, meus amores. Não se trata somente de falso-moralismo. Damares e Bolsonaro, na verdade, não querem só que a gente pare de GOZAR! Eles querem que a gente morra.

Necropolítica que chama… mas isso é assunto pra outra coluna.

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Feminista, eu? Uma mulher dona do seu corpo é a revolução que precisamos http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/01/31/feminista-eu-uma-mulher-dona-do-seu-corpo-e-a-revolucao-que-precisamos/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/01/31/feminista-eu-uma-mulher-dona-do-seu-corpo-e-a-revolucao-que-precisamos/#respond Fri, 31 Jan 2020 11:39:01 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=133 Nos últimos dias fui atropelada por duas reportagens. Uma descrevia o calvário da modelo Mariana Ferrer contra o homem que a dopou e a estuprou dentro de uma boate em Florianópolis. A outra ensinava mulheres a reconhecer abusos cometidos dentro de consultórios médicos, por profissionais que deveriam zelar pela saúde delas.

É tarefa difícil manter a sanidade mental em meio a tantas violações. Até onde minha vista alcança, não consigo enxergar o dia em que seremos simplesmente donas do nosso corpo.

Muitas de nós já normalizamos absurdos. Justificamos o injustificável e reforçamos, inclusive, as maldades perpetradas contra outras mulheres. No caso de Mariana, revirando a internet, me deparei com as mais terríveis justificativas. Homens e MULHERES dizendo que não foi tão estupro assim, que o criminoso não era tão mau assim, que ela não era tão “santa” assim. Como se o comportamento de uma mulher fosse explicação razoável para a violência sexual!

Das duas histórias, vivi o mesmo sentimento incômodo e angustiante que todas as mulheres sabem exatamente como é: não somos donas dos nossos corpos. Somos o depósito dos desejos alheios. Do médico que acha normal colocar a boca no seio de uma paciente ou tocá-la de forma absolutamente inadequada e fora de propósitos para a realização do exame físico, ao playboy que se sente seguro e autorizado a dopar uma jovem e estuprá-la dentro de um bar.

Cada cidade brasileira tem a sua própria fábrica de babacas. Homens machistas, criminosos, formados por este sistema que além de nos violentar, nos coloca como responsáveis pela educação, pela punição e pela regeneração desse tipo de criminoso..

Não é nossa responsabilidade brigar anos a fio para que criminosos sejam punidos. Se o estado brasileiro e seu sistema de Justiça não estão brigando com afinco para colocar estes estupradores na cadeia, algo de muito errado está posto.

Não somos nós, sangrando, nuas, destruídas, machucadas que devemos gritar por Justiça! E por mais cruel e injusto que seja, é exatamente isto que está acontecendo. Nos movimentamos entre nós, voltamos a falar dos abusos, trazemos os casos novamente ao debate, questionamos os que protegem o estuprador, questionamos as entidades de classe e a polícia, lutamos para que seja preso o médico que abusava de suas pacientes há décadas, criamos hashtags, campanhas, espalhamos fotos… e aí? Vai ser assim?

A consciência da luta feminista chega tarde, muitas vezes. Muitas conhecemos o feminismo pela dor de termos sido vítimas antes mesmo de saber que era importante brigar por autonomia e por direitos. A violência avança e não poupa nenhuma de nós. Casadas, grávidas, mães, solteiras, estudantes, profissionais bem sucedidas, pobres, brancas, pretas, pardas, indígenas, feministas ou não.

A consciência de que estamos vulneráveis por sermos quem somos e vivermos num país que permite, tolera, aceita e até aplaude quem nos violenta é um primeiro e importante passo.

Não nos esqueçamos pelo caminho. Vamos de mãos dadas. Marianas, Dalvas, Cleusas, Marias. Que a consciência do ser mulher, o feminismo e a luta por direitos chegue antes que a violência para todas nós.

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Discurso de Damares protege quem? As crianças e jovens ou seus abusadores? http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/01/24/discurso-de-damares-protege-quem-as-criancas-e-jovens-ou-seus-abusadores/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/01/24/discurso-de-damares-protege-quem-as-criancas-e-jovens-ou-seus-abusadores/#respond Fri, 24 Jan 2020 11:06:58 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=129 Quando eu penso que meu desânimo em relação ao Ministério da Mulher chegou ao nível máximo, eis que eles ressurgem no horizonte! São sempre os “muito preocupados com as nossas criancinhas”, guardiães incansáveis da moral e dos bons costumes. Que medo!

Eu fico sempre com os dois pés atrás quando vejo alguém  se dizendo defensor das criancinhas. Falou que veio salvar nossos filhos da imoralidade, eu já ligo o alerta máximo e me mantenho atentíssima! Não há nada mais velho que falso-moralista se apoiando nesse discurso para esconder suas atrocidades. Vamos a elas.

Nos últimos dias, meus ouvidos doeram com as declarações de representantes deste “governo” sobre as políticas públicas que serão direcionadas para a proteção dos nossos jovens.

“Incentivaremos a  abstinência sexual como ferramenta para redução de gestações na adolescência e do índice de infecções sexualmente transmissíveis.”

Muitos desavisados que ouvem uma fala oportunista e rasa dessas acaba por pensar que certa é a ministra que quer proteger nossos filhos dos esquerdistas e das feministas que acham que  jovens devem poder falar sobre sexo na escola: “Esse pessoal que quer ensinar meu filho a virar viado! Querem ensinar as meninas a transar!”

Até o presidente já repetiu coisas como essas: “A escola não é pra aprender a fazer sexo. Quando o pai bota o filho na escola, quer que ele aprenda alguma coisa”.

Confesso que dá uma preguicinha, sabe…

Como médica atuando em comunidades muito pobres, muito vulneráveis, já me cansei de ouvir essas coisas. Vindo de meus pacientes que não tiveram acesso ao conhecimento, eu até entendo, mas vindo de um ministro ou  do próprio presidente, não dá pra acreditar que seja ignorância. Há uma intenção muito perversa neste discurso.

Em resposta a onda de questionamentos sobre  a eficácia da proposta, a ministra da “””mulher””” (qual mulher, né?) publicou em suas redes o seguinte:

“Pais e responsáveis por cuidar de adolescentes, digam-me qual é o mal de conversar com um menino ou menina, a partir dos 12 anos, e dizer que talvez ainda não esteja maduro o suficiente para começar a ter relações sexuais? Que grande risco isso pode trazer?”

Eu respondo:  “Senhora, a gente só esqueceu de combinar com a pobreza, néah?!”

É óbvio que a maior parte das pessoas razoáveis não vai achar que crianças de 10 ou 12 anos devam estar transando. Principalmente porque sabemos que muitas delas estão, na verdade,  sendo violentadas por homens muito mais velhos que elas. A questão é outra!

Espia só, que informação interessante. Quanto mais pobre uma menina e sua família, mais precocemente ela iniciará sua vida sexual. Isso é um dado estatístico. Não sou eu que estou falando.  Ou seja, mais eficiente que dizer a esta menina pobre ou miserável “não transe” é dar a ela e a sua família condições para uma vida digna, garantias sociais que a permitam estudar, comer, se abrigar sem ter que trabalhar e até mesmo se prostituir.

Mas acabar com a miséria é difícil, né gente… dá um trabalho! Então vamos só fazer um outdoor, uns vídeos pra colocar no instagram e no youtube por que promover justiça social, redução da fome, da miséria demora muito e cansa a gente!  É coisa de esquerdista.

E veja que inusitado: pré-adolescentes e adolescentes que recebem informações sobre infecções sexualmente transmissíveis, sobre métodos contraceptivos, sobre saúde e sexualidade, a famosa educação sexual nas escolas, iniciam mais tardiamente a vida sexual. Ora, veja! Tratar deste assunto na escola reduz as taxas de infecções sexualmente transmissíveis e de gestações na adolescência e ainda atrasa o início da vida sexual desses adolescentes! Então, por que falar disso com os alunos é proibido?

Eu devo estar com meu pensamento todo trabalhado na maldade, mesmo. Só pode! Minha mente impura está produzindo esta negatividade! Cheguei até a pensar que a intenção deste “governo” é manter as coisas como estão ou piorá-las! Veja como eu sou ingrata e pessimista. Damares  se esforçando tanto para criar uma campanha tão maravilhosa e eu aqui já dizendo que vai dar errado, só por que os estudos mostram que isso é conversa mole pra moralista dormir. Eu fico torcendo contra um projeto tão bonitinho desses. Tem tudo pra receber chuva de likes, ou melhor, chuva de bençãos!

Na minha mente malvada até passou a ideia de que a intenção dessa gente é que mais e mais jovens adoeçam e que mais meninas engravidem cedo, inclusive de seus abusadores. Que encham a casa de mais e mais crianças frutos dessas gestações não planejadas e que  isso faça com que se perpetuem em situação de pobreza e miséria, que não consigam estudar, sair de casa para trabalhar. Que pensamentos absurdos esses meus, não é verdade?!

É claro que não. Essa maldade toda é coisa da minha cabeça.  Tenho certeza que esta política pública foi desenhada e construída pensando nas nossas adolescentes miseráveis lá do Pará, lá do Vale do Jequitinhonha, lá da divisa do Brasil com a Venezuela. Meninas ribeirinhas que mal conseguem acessar a escola e que passam os dias tentando fugir dos seus abusadores, muitos deles líderes religiosos, políticos ou grandes empresários. Registro aqui minha fé que uma campanha propondo abstinência vai ser justamente o que faltava para tirá-las desta situação de violência. Força, meninas! Tia Damares está com vocês!

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Seria eu uma mãe acabada? O mito da beleza e o deboche de Victor Chaves http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/01/17/seria-eu-uma-mae-acabada-o-mito-da-beleza-e-o-deboche-de-victor-chaves/ http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2020/01/17/seria-eu-uma-mae-acabada-o-mito-da-beleza-e-o-deboche-de-victor-chaves/#respond Fri, 17 Jan 2020 12:10:41 +0000 http://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/?p=125

Na última semana, após a interessante condenação de Victor Chaves a 18 dias de prisão em regime aberto por ter agredido sua esposa grávida, viralizou novamente um vídeo no qual o agressor gargalha após simular um interrogatório onde ele finge ser o delegado a lhe perguntar sobre o crime: “[Blá blá blá] 15 chutes na barriga?”. “[Blá blá blá] Você joga futebol?” Um escárnio.

Victor ri sem freios. Um deboche tão violento quanto os golpes desferidos contra a vítima caída no chão. Uma cena tão impactante que me deixou enojada. Foi como assistir a uma segunda agressão. Esta, dirigida a todas as mulheres.

Era como se ele dissesse: “Bati,mesmo! Por quê? Achou ruim?” Um verdadeiro soco no estômago. A sensação de angústia e impotência ao ver aquele sujeito se manifestar com tamanho desdém pela mulher e pela justiça me acompanhou por dias!

Aparentemente, minha angústia não foi um sentimento compartilhado por tanta gente assim. Parte significativa das mulheres na internet estava empenhada em dizer o quanto se mantinham bonitas após a maternidade. Acredite. “Sou mãe e não estou acabada” foi o resumo dos relatos que nos esbofetearam por último.

Era sobre a heroica jornada de mulheres que conseguiram manter seus corpos intactos após terem sido atropeladas pelo caminhão cegonha chamado maternidade. Este foi o assunto dentro e fora dos grupos de mães que participo. Contando assim, eu mesma quase não consigo acreditar.

Antes de explodir de preguiça deste “debate” infeliz, imbecil, emburrecedor e idiotizante, gastei minha dose semanal de empatia tentando entender tamanha dominação mental. Afinal, que poder bizarro é esse que um sistema patriarcal exerce sobre as mentes femininas fazendo com que elas mesmas reforcem as grades e o concreto de suas próprias celas e se mantenham presas ali eternamente. Corpo e mente cativos, emudecidos e entregues a um rígido padrão estético que para ser atingido lhes toma tempo, dinheiro, energia, humor e as impede de viver uma vida plena. Um padrão que contempla a biologia e a genética de apenas 5% dos corpos femininos. As outras 95% vão passar a vida tentando.

Essencialmente, a modinha “sou mãe e não estou acabada” é replicadora de inúmeras opressões. A mulher que tem um companheiro que se compromete com o cuidado dos filhos e da casa, que tem uma vida tranquila, que trabalha pouco, que tem acesso a alimentação de qualidade, que pode realizar procedimentos estéticos, que tem preservada sua saúde mental, que mora em uma região segura e que por isso pode se exercitar, que tem tênis e roupa de ginástica, que tem com quem deixar os filhos, que teve acesso à planejamento familiar e, por isso, teve somente os filhos que podia ter e tinha condições de cuidar…

Sim, esta mulher está esfregando a sua barriga esculpida com malhação, cirurgia plástica, ou até por sua genética na cara da mãe negra, moradora da periferia, que trabalha o dia inteiro limpando a casa de alguém, que enfrenta transporte público de qualidade desumana, que come o que tem e que, quando chega em casa, gasta seu tempo de “descanso” para organizar minimamente a vida da família. Que tem cinco filhos, que não conseguiu ser atendida no posto de saúde, que engravidou enquanto esperava pelo DIU e usando a pílula que falhou, que tinha um companheiro violento que se recusava a usar preservativo, que tem pressão alta… a lista é infinita.

Volta pra cena daquele sujeito gargalhando. Olha em volta dele. Percebe? Ele não está só. Na plateia, aplaudindo e apoiando seu deboche, estamos nós, que ao invés de questionarmos a lei que o autoriza a pagar por uma agressão com 18 dias de regime aberto, estamos aqui discutindo quem está mais parecida com uma panicat (sei lá se se escreve panicat assim).

Veja bem: a vítima era uma mulher branca e financeiramente resolvida, de aparência dentro dos padrões estéticos aceitos por esse patriarcado. Nem ela está protegida. Você pode imaginar o que sobra para mulheres negras e periféricas?

A quem, além de você mesma, importa o estado que seu corpo ficou depois de gestar uma pessoa, Anja? Quem liga se seu peso já voltou ao que era antes da gestação? Alguém se importa se sua bunda, suas coxas, seus peitos e sua barriga estão flácidas, se o seu cabelo caiu e ficou ralo, se a pele do seu rosto está manchada?

Que bom pra quem está feliz com o seu corpo. E isso não tem nada a ver com entrar dentro de rígidos padrões estéticos. Eu tô feliz com o meu e minha barriga, acompanhando minha bunda e meus peitos (pois ela não seria capaz de deixá-los sozinhos nessa) está caída, flácida e com estrias. Amo este veículo que o planeta me emprestou pra dar uns rolês por aí. Amo que continuo gozando muito depois de parir. Em todos os sentidos. Isso era muito importante pra mim.

Naomi Wolf, autora de “O mito da beleza”, descreve esta estratégia massacrante de exposição de modelos cada vez mais inatingíveis por parte da mídia. Uma aparência indefectível, irreal (já que é construída no computador, em fotos corrigidas) e que representa um rígido e nada inclusivo padrão. Tão rígido que não tolera diversidades e que exclui cerca de 95% das mulheres do planeta.

Passamos uma vida gastando dinheiro para corrigir o que nem é defeito e damos nosso tempo, nossa energia, nossa capacidade de pensar e até nossa saúde física e mental na bandeja para um sistema que nos quer assim: cativas! Não temos tempo de contestar a boçalidade de um sujeito violento e abominável e sua inacreditável pena de 18 dias por que estamos brigando umas com as outras pra saber quem é “desleixada” com o corpo. Não temos tempo de discutir política, de nos divertir. Não nos permitimos sequer comer em paz. Acorda, moça!

O machismo venceu.

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