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Júlia Rocha

O Outubro Rosa de Inês, que teve a mama amputada sem necessidade

Júlia Rocha

04/10/2019 14h49

Primeiro, conheci Ana. Era novembro. Nunca vou esquecer por que o motivo de tê-la encontrado era a mamografia de sua mãe. Trêmula, chorosa, confidenciou que há 2 dias não conseguia tomar sequer um gole d'água, tamanha era sua preocupação com o resultado do exame que acabara de chegar.

"Mas sua mãe estava ótima! Conversei com ela na padaria não tem uma semana!"

"O resultado da mamografia chegou."

Inês havia corrido contra o tempo para conseguir, no último dia do mês de outubro realizar sua mamografia.

"Você veja bem, doutora! Em pleno outubro rosa! Minha mãe com 46 anos, teve que pedir uma amiga que trabalhava num caminhão desses que faz mamografia pra conseguir o exame. É um absurdo isso! Agora, aqui no posto, só fazem de mulheres com mais de 50. Imagina se a minha mãe espera 4 anos. Até lá já estaria morta."

O resumo da história que se seguiu é triste, mas o resultado deste calvário que percorreram Inês e toda a sua família vale uma reflexão profunda . Foram dois meses apreensivos, entre exames complementares e biópsias. O resultado era inconclusivo e ela foi submetida a uma cirurgia que mutilou um quadrante de sua mama. A amputação, contraditoriamente, lhe trouxe alívio e alegria, mas a surpresa ainda estava por vir. O resultado da análise do material retirado de sua mama era negativo. Não se tratava de um câncer. Enviaram a peça para análise em outro laboratório e a conclusão foi a mesma. Inês havia sido submetida a intenso estresse emocional e a uma cirurgia (com todos os riscos que isso envolve), teve parte de sua mama amputada. Tudo de forma absolutamente desnecessária.

Acompanhei esta família há 4 anos. Na ocasião, minhas palavras não foram suficientes para aliviar o sofrimento de nenhum deles. Eu lembro de conversas longas regadas a muitas lágrimas. Eu tentando explicar e oferecer dados estatísticos na tentativa de amenizar a dor dos filhos e do marido, sem sucesso. Eles me procuravam sem que ela soubesse para tentar entender melhor quais eram as previsões para o futuro. Já faziam planos de quem ficaria responsável em cuidar dela no hospital, de montar um quarto adequado para ela dentro de casa. Foi um período tenebroso para todos eles. Ao final, eu só conseguia pensar: "por que diabos um sistema de saúde permite que tanto sofrimento ocorra sem qualquer necessidade?"

Tocar nesse assunto, ainda mais sendo médica, é como mexer numa casa de marimbondos. De um modo geral, as pessoas reagem de forma muito apaixonada. Sempre há alguém que "foi salva" pela mamografia aos 35, 40, 45 anos. Estas pessoas costumam chamar quem faz qualquer questionamento ao exame de irresponsável ou coisa parecida. Fato é que não há lugar para análises apaixonadas quando o assunto é ciência. A paixão nos cega e nos deixa vulneráveis. Se quer entender melhor o que ocorreu com a Dona Inês, me acompanhe nesta reflexão.

Os meses coloridos estão criando uma agenda de intervenções diversas em programas de rastreamento onde a informação cientificamente qualificada fica em segundo plano. Pessoas saudáveis são incentivadas a fazer exames regularmente como se neste processo não estivessem envolvidos riscos consideráveis. Como se médicos, sozinhos, pudessem tomar decisões importantes sobre a saúde de seus pacientes sem saber se os riscos envolvidos fazem sentido ou são aceitáveis para aquela pessoa, individualmente.

O câncer de mama é, de fato, uma causa relevante dentre as mortes por câncer, mas em números absolutos, a redução de mortes trazida pelos programas de rastreamento não são tão significativas como alardeiam por aí. É comum que a publicidade dos vendedores de mamografia afirmem que há uma redução de 20% das mortes entre mulheres que participam destes programas ao longo de uma década. A tradução deste dado é que num grupo de 1000 mulheres, ao invés de morrerem 5, morrerão 4 por esta causa ao longo de dez anos. Veja como as coisas não parecem mais tão vantajosas.

Certa vez eu falei disso entre colegas e um deles me interpelou: "Se esta vida salva for a sua ou a da sua mãe, você vai gostar!" Mais uma análise apaixonada! Alguns me questionaram se não me sensibilizava a morte de mulheres pela doença. Como não?! Eu queria poder evitá-las. A questão é que a gente não suporta a ideia de que muitas vezes não podemos.

Impossível não me lembrar aqui de uma paciente que me procurou há pouco mais de 1 ano. Já tinha sintomas de um câncer de mama avançado, com grande nódulo endurecido e palpável ocupando quase toda a mama, alterações da pele e do mamilo típicas dos tumores agressivos. Ela veio até mim um ano após buscar ajuda médica pois havia notado uma secreção estranha em seu mamilo. Ela tinha 58 anos na ocasião.

"E o que fizeram?" Perguntei aflita.

"Não sei se o moço ouviu o que eu disse. Eu falei do meu seio mas ele só assinou a renovação da minha receita e chamou o próximo."

Algo errado não pode estar certo… O diagnóstico precoce, fator importantíssimo na tentativa de evitar a morte, foi totalmente negligenciado. Há um abismo separando o país desta senhora e o meu. É importante ressaltar que rastrear é fazer exames em quem não sente nada. Esta paciente já tinha sintomas e não foi adequadamente ouvida, nem avaliada.

Voltemos à prevenção. Cabe aqui uma reflexão importantíssima sobre outros dados.

A força tarefa (serviço de prevenção) canadense baseou-se na realidade daquele país para fornecer informações que ajudassem médico e paciente a tomarem decisões de forma mais esclarecida. Os dados são os seguintes: a cada 720 mulheres com idade entre 50 e 69 anos, sem alto risco para câncer de mama que realizam mamografia a cada 2 anos, durante 11 anos, cerca de 204 poderão ter um resultado falso positivo, o que as levará a realização de novos exames. 26 delas poderão realizar biópsia para confirmar ou não o diagnóstico de câncer de mama. 4 delas poderão ter a mama removida em parte ou totalmente, sem necessidade. 1 mulher poderá escapar de morrer de câncer.

O resultado que mais me choca são os referentes ao que chamamos de sobrediagnósticos. Aproximadamente 30% dos cânceres diagnosticados por mamografias de rastreamento são inofensivos, de comportamento benigno, que não cresceriam ou provocariam a morte da mulher que o carrega. Alguns, inclusive, desapareceriam espontaneamente. Percebe como a cada dia formamos um grupo cada vez maior de "mulheres que foram salvas da morte pela mamografia" quando na verdade o grupo que formamos deveria se chamar "mulheres mutiladas de forma absolutamente desnecessária sem terem sido avisadas sobre os riscos envolvidos em um programa de rastreio"?

Muitos destes programas estão sedimentados na nossa incapacidade de lidar com as incertezas inerentes à vida. Queremos ter o controle de absolutamente tudo e não temos. Na prática clínica, as incertezas são nossas companheiras diárias e se não soubermos viver com mais perguntas que respostas, podemos causar mais danos que benefícios a muitos de nossos pacientes.

Fazer mamografias com frequência,infelizmente, não nos impede de morrer de câncer de mama. Decidir não fazê-las, não é uma sentença de morte. Um resultado positivo tem grande chance de não se confirmar como um câncer, de fato. Um resultado negativo pode se mostrar equivocado com o passar dos anos.

O que a ciência nos permite dizer hoje é que há, sim, um pequeno benefício em se fazer mamografias de dois em dois anos, em mulheres entre 50 e 69 anos. Com menos de 50 anos, há mais risco de prejuízos para a saúde do que de benefícios.

Para reduzir a chance de desenvolver a doença, se puder e quiser, tenha filhos logo (antes dos trinta), amamente-os o maior tempo que você puder e quiser, mantenha um peso razoável, não utilize reposição hormonal, não fume e vá ser feliz. Aproveite suas mamas para nutrir seus rebentos e para sentir prazer.

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário