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Júlia Rocha

Dar nó no lençol do filho não é suficiente. Ser pai e mãe exige presença

ECOA

08/11/2019 09h35

Meu pai tem 72 anos. Eu sempre o defini como um homem muito trabalhador. Tive orgulho em dizer isso até o dia que o vi ter um AVC. Diabético e hipertenso, sua vida era de cirurgia em cirurgia, de plantão em plantão. Lembro com detalhes da nossa pouca convivência e da forma como eu me sentia distante dele e muito mais íntima e próxima da minha mãe. Ele trabalhava de segunda a sexta. Saía de casa antes das 7 e retornava às 22 horas. Com exceção da sexta à noite, dia em que saía do trabalho direto para um plantão que durava até as 7 horas da manhã de sábado.

Seus momentos em casa eram raros. Durante o dia de sábado, ele dormia quase que todo o período da manhã e da tarde para compensar a noite em claro. No domingo ele estava mais presente. Se esforçava muito para fazer compensar a ausência dos dias de trabalho. Lembro com alegria que ele gostava de nos levar ao teatro. Era uma delícia. Passávamos horas de diversão e ele também conseguia curtir a família e o passeio.

Acho que vem desta época a minha impressão de que domingos passam muito rápido. Parecia pouco tempo para construir alguma intimidade. Tenho lembranças de frases que ele, vez ou outra, repetia: "Filho tem mais intimidade com a mãe mesmo. Deve ser pela amamentação", "As crianças são mais apegadas à mãe. Isso é normal". Ele sempre dizia essas coisas e eu repetia isso vida afora. Achava inusitado, para não dizer surpreendente ou estranho, quando alguma colega de escola contava coisas que evidenciavam sua cumplicidade e proximidade com o pai. Era difícil entender que aquilo era possível.

Cresci achando que só existia relação próxima com mãe e que pai era aquele cara com quem convivíamos pouco, que não sentava no chão com a gente, que não dava colo, que não dava beijos estalados, que não fazia cafuné, que não fazia bolinho de chuva, que não fazia as refeições com a gente, que chegava em casa esgotado, tomava banho e ia dormir.

Trabalhando mais de 70 horas por semana, comendo quando dava, o que dava, se exercitando pouco, tendo poucos momentos de convivência familiar e descanso, faltando em quase todas as reuniões escolares, em quase todas as comemorações e datas especiais como Natal, Réveillon, aniversários por causa dos compromissos de trabalho, meu pai, sem saber, me mostrava como eu não gostaria de viver. Aos 57 anos, ele teve um AVC que o obrigou a parar. Um cirurgião sem os movimentos da mão direita. Era um fim duríssimo para a carreira de um grande médico. Seu corpo o parou.

Foi só aos 21 anos que eu pude, enfim,  conhecer meu pai. Passamos a conviver e construir nossa intimidade. Como foi difícil! Incontáveis conflitos, brigas, rusgas. Éramos estranhos. Não sabia do que ele gostava, o que ele pensava sobre as coisas mais simples da vida. Passamos duas décadas entre "bom dia" e "boa noite", sem tempo para sermos pai e filha. Ainda bem que nos foi permitido esta reinvenção de nós.

Sei que ele fez o que fez de forma muito amorosa e desprendida. Ele quase não comprava coisas para si. Estava sempre com as mesmas roupas simples, chinelo, carro velho, carteira surrada. Sempre foi extremamente dedicado à família e seu trabalho intenso era para conseguir pagar escola, cursos de idiomas, faculdade e tudo que quiséssemos fazer para termos uma boa formação.

Quando tivemos nossa filha, eu e meu companheiro decidimos tentar construir uma vida diferente. Passamos dois anos pagando prestações diversas. Reforma do apartamento, armários, moto, carro. Por dois anos resistimos bravamente às tentações de fazer novas contas. Abrimos mão de alguns hábitos, caminhamos em direção a uma vida bem mais simples, sem luxos, sem gastos desnecessários mas com preocupações bem definidas. Queríamos tempo para viver. Nossa maior ambição era almoçar juntos, passar horas do dia a conversar e trocar nossas percepções sobre a vida, brincar com a nossa filha, estimulá-la através da música, dos livros. Parece pouco, mas é luxo só!

Não é possível ter tanto tempo livre para viver de verdade e seguir na roda viva do consumo desenfreado. Nós precisamos escolher. Tenho consciência que poder trilhar caminhos alternativos como este é um enorme privilégio. Mais da metade da população brasileira hoje trabalha sem descanso para sobreviver. Enfrentam transporte público de péssima qualidade e jornadas extenuantes para levar apenas o que comer aos filhos. Peço até licença para expor uma realidade como a minha aqui.

O fato é que descobri cedo que não adiantava dar o nó no lençol do filho durante a noite na hora em que ele já estava dormindo para que ele visse de manhã que o pai esteve lá. Quem nunca ouviu essa história?  O pai que chegava do trabalho depois de toda a família ter ido para a cama e saía cedo, antes que tivessem acordado.

Tentaram me convencer a vida toda de que isso era ser pai, ser mãe, ser presença. Era só um jeito bonito de iludir  alguns desavisados para que achassem que trabalhar muito é normal e saudável. Infelizmente, ainda hoje, esta é uma necessidade para a sobrevivência, mas trabalhar muito é horrível e desumano, sim.

Quando tomei a decisão de reduzir drasticamente a minha carga horária, tive vergonha de falar para o meu pai. Tinha medo de que ele me julgasse preguiçosa. Dizer que trabalho pouco ainda soa quase que como algo pecaminoso para mim, mas aos poucos vou me acostumando e mudando minha percepção sobre isso.

Tem me gerado imenso prazer responder àquela clássica pergunta "Trabalhando muito?" com um sonoro "Não!" ou quando no elevador nos exclamam "Correria, né?!" e eu retruco: "Nada. Correria, não. Vou vivendo com calma".

Estamos fazendo uma micro-revolução familiar. Vivemos hoje a vida que meus colegas de profissão planejam viver depois da aposentadoria. Compramos pouquíssimas coisas, não passeamos em shoppings, não gastamos em salões de beleza, não planejamos cirurgias plásticas ou procedimentos estéticos (nos achamos lindos demais), não trocamos o carro nem usamos muito o que temos, não comemos fora muitas vezes por mês. Fazemos muitos passeios gratuitos e outros tantos por preços populares. Frequentamos cinemas e teatros com entradas baratas, pois temos tempo para passear nos dias em que consumistas estão soterrados em reuniões, vendas e longas jornadas de trabalho que precisam cumprir para pagar a prestação do carro novo, da viagem internacional, do telefone de alguns milhares de reais e das roupas e sapatos novos.

Prefiro viver assim. Eu e meu pai tivemos tempo de reparar nossa história, mas isso veio somente com o seu adoecimento. Ele entregou sua juventude e sua saúde aos seus empregadores. Afinal, na minha humilde opinião, é disso que se trata. Eu amo o meu trabalho, mas detesto trabalhar muito. Já tive vergonha de dizer isso. Hoje, faço questão de falar.

Recentemente publiquei em minhas redes sobre o meu desgaste físico e emocional após um plantão e recebi uma avalanche de mensagens de colegas de todas as idades falando de como se sentem sobrecarregados, esgotados e desanimados em seguir em frente.

Eu faço questão de lembrar a todos eles que o que entregamos aos que exploram nosso trabalho é o nosso tempo de vida, nossa juventude e nossa saúde, façam eles o que quiserem fazer com esta minha mensagem.

Atualmente entrego 24 horas da minha semana. Acho que está razoável. O resto do tempo eu vivo.

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário