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Júlia Rocha

Seria eu uma mãe acabada? O mito da beleza e o deboche de Victor Chaves

ECOA

17/01/2020 09h10

Na última semana, após a interessante condenação de Victor Chaves a 18 dias de prisão em regime aberto por ter agredido sua esposa grávida, viralizou novamente um vídeo no qual o agressor gargalha após simular um interrogatório onde ele finge ser o delegado a lhe perguntar sobre o crime: "[Blá blá blá] 15 chutes na barriga?". "[Blá blá blá] Você joga futebol?" Um escárnio.

Victor ri sem freios. Um deboche tão violento quanto os golpes desferidos contra a vítima caída no chão. Uma cena tão impactante que me deixou enojada. Foi como assistir a uma segunda agressão. Esta, dirigida a todas as mulheres.

Era como se ele dissesse: "Bati,mesmo! Por quê? Achou ruim?" Um verdadeiro soco no estômago. A sensação de angústia e impotência ao ver aquele sujeito se manifestar com tamanho desdém pela mulher e pela justiça me acompanhou por dias!

Aparentemente, minha angústia não foi um sentimento compartilhado por tanta gente assim. Parte significativa das mulheres na internet estava empenhada em dizer o quanto se mantinham bonitas após a maternidade. Acredite. "Sou mãe e não estou acabada" foi o resumo dos relatos que nos esbofetearam por último.

Era sobre a heroica jornada de mulheres que conseguiram manter seus corpos intactos após terem sido atropeladas pelo caminhão cegonha chamado maternidade. Este foi o assunto dentro e fora dos grupos de mães que participo. Contando assim, eu mesma quase não consigo acreditar.

Antes de explodir de preguiça deste "debate" infeliz, imbecil, emburrecedor e idiotizante, gastei minha dose semanal de empatia tentando entender tamanha dominação mental. Afinal, que poder bizarro é esse que um sistema patriarcal exerce sobre as mentes femininas fazendo com que elas mesmas reforcem as grades e o concreto de suas próprias celas e se mantenham presas ali eternamente. Corpo e mente cativos, emudecidos e entregues a um rígido padrão estético que para ser atingido lhes toma tempo, dinheiro, energia, humor e as impede de viver uma vida plena. Um padrão que contempla a biologia e a genética de apenas 5% dos corpos femininos. As outras 95% vão passar a vida tentando.

Essencialmente, a modinha "sou mãe e não estou acabada" é replicadora de inúmeras opressões. A mulher que tem um companheiro que se compromete com o cuidado dos filhos e da casa, que tem uma vida tranquila, que trabalha pouco, que tem acesso a alimentação de qualidade, que pode realizar procedimentos estéticos, que tem preservada sua saúde mental, que mora em uma região segura e que por isso pode se exercitar, que tem tênis e roupa de ginástica, que tem com quem deixar os filhos, que teve acesso à planejamento familiar e, por isso, teve somente os filhos que podia ter e tinha condições de cuidar…

Sim, esta mulher está esfregando a sua barriga esculpida com malhação, cirurgia plástica, ou até por sua genética na cara da mãe negra, moradora da periferia, que trabalha o dia inteiro limpando a casa de alguém, que enfrenta transporte público de qualidade desumana, que come o que tem e que, quando chega em casa, gasta seu tempo de "descanso" para organizar minimamente a vida da família. Que tem cinco filhos, que não conseguiu ser atendida no posto de saúde, que engravidou enquanto esperava pelo DIU e usando a pílula que falhou, que tinha um companheiro violento que se recusava a usar preservativo, que tem pressão alta… a lista é infinita.

Volta pra cena daquele sujeito gargalhando. Olha em volta dele. Percebe? Ele não está só. Na plateia, aplaudindo e apoiando seu deboche, estamos nós, que ao invés de questionarmos a lei que o autoriza a pagar por uma agressão com 18 dias de regime aberto, estamos aqui discutindo quem está mais parecida com uma panicat (sei lá se se escreve panicat assim).

Veja bem: a vítima era uma mulher branca e financeiramente resolvida, de aparência dentro dos padrões estéticos aceitos por esse patriarcado. Nem ela está protegida. Você pode imaginar o que sobra para mulheres negras e periféricas?

A quem, além de você mesma, importa o estado que seu corpo ficou depois de gestar uma pessoa, Anja? Quem liga se seu peso já voltou ao que era antes da gestação? Alguém se importa se sua bunda, suas coxas, seus peitos e sua barriga estão flácidas, se o seu cabelo caiu e ficou ralo, se a pele do seu rosto está manchada?

Que bom pra quem está feliz com o seu corpo. E isso não tem nada a ver com entrar dentro de rígidos padrões estéticos. Eu tô feliz com o meu e minha barriga, acompanhando minha bunda e meus peitos (pois ela não seria capaz de deixá-los sozinhos nessa) está caída, flácida e com estrias. Amo este veículo que o planeta me emprestou pra dar uns rolês por aí. Amo que continuo gozando muito depois de parir. Em todos os sentidos. Isso era muito importante pra mim.

Naomi Wolf, autora de "O mito da beleza", descreve esta estratégia massacrante de exposição de modelos cada vez mais inatingíveis por parte da mídia. Uma aparência indefectível, irreal (já que é construída no computador, em fotos corrigidas) e que representa um rígido e nada inclusivo padrão. Tão rígido que não tolera diversidades e que exclui cerca de 95% das mulheres do planeta.

Passamos uma vida gastando dinheiro para corrigir o que nem é defeito e damos nosso tempo, nossa energia, nossa capacidade de pensar e até nossa saúde física e mental na bandeja para um sistema que nos quer assim: cativas! Não temos tempo de contestar a boçalidade de um sujeito violento e abominável e sua inacreditável pena de 18 dias por que estamos brigando umas com as outras pra saber quem é "desleixada" com o corpo. Não temos tempo de discutir política, de nos divertir. Não nos permitimos sequer comer em paz. Acorda, moça!

O machismo venceu.

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário