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Júlia Rocha

Creusa nunca irá à Disney. Mas Creusa quer ir à Disney?

ECOA

14/02/2020 09h13

Seu Guedes é um cara cruel. Seu Guedes, às vezes, fala coisas que tocam a perversidade. Mas, um mérito nós não podemos tirar dele. Seu Guedes é sincero. Sincerão, sabe? Tipo aquele tio que fala que gostava mais dos anos 90, quando ele podia fazer piada de preto e de viado sem ser incomodado pela sobrinha milituda feminista-antirracista.

Pois então, Seu Guedes parou lá. Nos anos 90. Se tornou aquele senhor idoso cuja única característica que traz para ele os holofotes é ser o chatão que ninguém quer contrariar na mesa do almoço de domingo pra não sair briga até o fim do pavê que a esposa dele fez de sobremesa. Um tipo insosso, mas que acha graça e se vangloria de não ter qualquer filtro entre o cérebro e a língua. Aquele que pensa e fala. Na lata. Sem freio! Pensa merda. Fala merda. Assim, no automático. Pois então… receita explosiva. É inevitável. Toda hora vai escorrer veneno.

O Seu Guedes podia comemorar o dólar a 4 e 35 apenas fingindo que para a indústria brasileira isso vai significar mais exportação, mais crescimento, mas tio Guedes não aguenta. É mais forte que ele, coitado! O racismo e o ódio de classes são tão grandes que escorrem pelo canto da boca. Escapam entre os dentes. E quando o Seu Guedes percebe, ops:

"Empregada doméstica indo pra Disney, como assim?!"

Ôh, Seu Guedes, desce daí! Em que país você vive? Empregada doméstica tá lá preocupada com preço do dólar por causa de Disney? Que mané Disney, o que! Isso é muito classe média branca para o gosto delas. Que homem sem rumo, gente! Arruma uma bússola pra ele.

O seu Guedes entende (e olhe lá!) de números. Ele não entende de mais nada além disto. A questão é que são os números e o que eles representam que erguem as barreiras entre ricos e pobres, pretos e brancos. São os números e suas barreiras invisíveis que colocam na ordem do impossível um homem negro, favelado chegar à universidade, conseguir um emprego decente, comprar uma casa boa, distante da margem do rio que enche e leva tudo. É disso que ele nem quer ouvir falar. Pro Seu Guedes, tanto faz se a chuva cai pra cima ou pra baixo. Não sendo ele e sua patota a sujar o pé no barro…

O Seu Guedes esquece que números representam a condição de vida das pessoas. Ou melhor, ele não esquece. Ele sabe. E sabe bem. A questão é que Guedes, o cruel, está a serviço de quem vive da exploração, da submissão, da falta de opção destas empregadas domésticas e de todos os trabalhadores. Desde os decadentes da classe média, que gostam de comemorar que o preço da faxina caiu e que agora dá pra pagar 70 reais para uma mulher negra qualquer limpar o cocô agarrado no seu vaso sanitário porco, do seu banheiro porco, cujo ralo do chuveiro tá cheio de cabelo, por que a classe média brasileira não desenvolveu esta habilidade de limpar o ralo do banheiro, bando de escravocrata ressentido que não tira o prato da mesa depois do almoço, até os multibilionários que enxergam essas mesmas empregadas e os outros trabalhadores como números e que juntam mais outros bilhões às custas da miséria e da morte alheias.

Guedes, o cruel, se parasse uma única vez na vida para ouvir sua empregada, saberia que ela está defecando pra Orlando, Miami ou qualquer outro sonho branco/classe média que ele quer manter como exclusividade da sua casta. Saberia que o que uma empregada doméstica quer é ter oportunidade, para si e para os seus filhos, de estudar e poder escolher a profissão que querem ter. Por que ninguém sonha em ser empregada doméstica, Seu Guedes. Elas aceitam enquanto a classe trabalhadora ainda não se uniu de forma eficiente para te tirar daí.

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário