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Júlia Rocha

Mulher, mulher, envelhecer é um pecado

ECOA

28/02/2020 08h58

Mulher, mulher, envelhecer é um pecado.

Mortal, inclusive. E literalmente, muitas vezes. Porque quando não mata de desgosto e solidão, mata no pós operatório de uma cirurgia desnecessária para levantar alguma parte do corpo com a finalidade de que se pareça ter dez anos a menos.

Já ouço daqui o ranger dos dentes e as reações apaixonadas dos que defendem com a própria vida o direito de se esticar até o fim da última ruga, da última pelanquinha. Nada pessoal, gente! Minha questão aqui é outra. Eu só quero pensar mais profundamente sobre isso. Sair da superfície, da derme, chegar às camadas mais internas da dor que se tornou envelhecer. Afinal, o que nos motiva a entregar nosso corpo para ser consertado, corrigido e adequado por procedimentos cirúrgicos que representam, sim, riscos relevantes à saúde física e mental?

Que incômodo tamanho é esse que faz tantas mulheres deixarem suas famílias em casa e caminharem saudáveis até um bloco cirúrgico para encarar sem questionamentos longas e invasivas intervenções, pós-operatórios frequentemente dolorosos e incapacitantes para se parecerem com as mulheres que elas já não são mais.

Algo nos fez odiar habitar nossos corpos envelhecidos. Nem nossa vulva escapou da varinha mágica padronizadora dos profissionais da "beleza". O padrão é ser jovem. Para tanto, apaguemos as marcas de tudo que denuncia que já vivemos muito. 

Você já ouviu falar sobre discriminação etária ou etarismo? Basicamente, etarismo é a discriminação de pessoas baseada na idade. Mesmo que você nunca tenha ouvido esta palavra antes, certamente já vivenciou situações em que esta discriminação se fez presente. Numa seleção para um emprego, na escolha de quem seria demitido, na ideia previamente posta de que pessoas mais velhas são fisicamente incapazes, improdutivas, e por aí vai.

Para além do impacto na carreira das mulheres, a discriminação etária também impacta nossos afetos e nossa autoestima.

Se você, leitor, for um homem de meia idade. Relaxe. Nada disso serve pra você. Homem envelhecendo é puro charme. Os cabelos grisalhos são a marca da sedução. As rugas são gentilmente relevadas, a barriguinha saliente vira sinal de que aproveitou as coisas boas da vida. Contudo, se você for uma mulher, prepare-se.

Pra quem ainda não entendeu ou acha que eu estou exagerando, experimente deixar a natureza e o tempo agirem soberana e naturalmente sobre o seu corpo, sua pele, seus cabelos. Deixe-os naturalmente brancos. O rosto, permita-o enrugar-se por entre olhos e orelhas. Deixe os lábios naturalmente mais finos e ligeiramente caídos, acompanhando peitos que amamentaram, barrigas que gestaram, bundas que rebolaram por tantos e tantos carnavais. Permita-se viver sem se importar com nada disso, sem se violentar em procedimentos estéticos e PREPARE-SE. Espere a metralhadora do machismo a te fuzilar com uma rajada de tiros na sua cara sem botox ou no seu peito sem silicone.

Se você for rica, para ser aceita velha, terá como parte das suas obrigações diárias impedir que as pessoas percebam que, pra você também, o tempo passou. Cirurgias, procedimentos dolorosos e invasivos, cuidados longos e cansativos, maquiagem, extenuantes aulas na academia. Abrace a sua sina ou aguente firme o que virá.

Não importa a classe social. Mais ou menos intensamente, todas nos mulheres viveremos a discriminação etária, seja no mundo corporativo, no convívio social ou nas vivências afetivas. Mulheres jovens, cada vez mais jovens, agora são troféus de homens de meia idade ou idosos recém separados. Há uma legião de mulheres com seus 40 ou 50 anos que se separou ou que são solteiras e que simplesmente não encontram um parceiro interessado em construir uma relação de afeto. Pelo contrário, homens na casa dos 70 estampam capas de jornais e revistas com suas namoradas ou recém-esposas de 25 ou 30.

O marketing tem um papel essencial na venda deste imaginário quase infantil da mulher e da sua aparência. Todos os dias, todos os minutos, somos bombardeados com imagens de meninas cada vez mais jovens nas propagandas de quase tudo. Cria-se um desejo de ser a jovem que nunca seremos. E a chave é nunca ser mesmo. É importantíssimo que o objetivo a ser alcançado seja explicitamente impossível. Porque, para quem vende o nosso sonhado retorno aos tempos de pele lisa, barriga sem flacidez, sem marcas, a bunda dura e sem celulite, aos cabelos naturalmente coloridos, o importante não é que a gente chegue a algum lugar ou conquiste um objetivo. O importante é que a gente não pare de buscar.

Ainda bem que há outros caminhos. Vou por esses.

Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário