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Discurso de Damares protege quem? As crianças e jovens ou seus abusadores?

ECOA

24/01/2020 08h06

Quando eu penso que meu desânimo em relação ao Ministério da Mulher chegou ao nível máximo, eis que eles ressurgem no horizonte! São sempre os "muito preocupados com as nossas criancinhas", guardiães incansáveis da moral e dos bons costumes. Que medo!

Eu fico sempre com os dois pés atrás quando vejo alguém  se dizendo defensor das criancinhas. Falou que veio salvar nossos filhos da imoralidade, eu já ligo o alerta máximo e me mantenho atentíssima! Não há nada mais velho que falso-moralista se apoiando nesse discurso para esconder suas atrocidades. Vamos a elas.

Nos últimos dias, meus ouvidos doeram com as declarações de representantes deste "governo" sobre as políticas públicas que serão direcionadas para a proteção dos nossos jovens.

"Incentivaremos a  abstinência sexual como ferramenta para redução de gestações na adolescência e do índice de infecções sexualmente transmissíveis."

Muitos desavisados que ouvem uma fala oportunista e rasa dessas acaba por pensar que certa é a ministra que quer proteger nossos filhos dos esquerdistas e das feministas que acham que  jovens devem poder falar sobre sexo na escola: "Esse pessoal que quer ensinar meu filho a virar viado! Querem ensinar as meninas a transar!"

Até o presidente já repetiu coisas como essas: "A escola não é pra aprender a fazer sexo. Quando o pai bota o filho na escola, quer que ele aprenda alguma coisa".

Confesso que dá uma preguicinha, sabe…

Como médica atuando em comunidades muito pobres, muito vulneráveis, já me cansei de ouvir essas coisas. Vindo de meus pacientes que não tiveram acesso ao conhecimento, eu até entendo, mas vindo de um ministro ou  do próprio presidente, não dá pra acreditar que seja ignorância. Há uma intenção muito perversa neste discurso.

Em resposta a onda de questionamentos sobre  a eficácia da proposta, a ministra da """mulher""" (qual mulher, né?) publicou em suas redes o seguinte:

"Pais e responsáveis por cuidar de adolescentes, digam-me qual é o mal de conversar com um menino ou menina, a partir dos 12 anos, e dizer que talvez ainda não esteja maduro o suficiente para começar a ter relações sexuais? Que grande risco isso pode trazer?"

Eu respondo:  "Senhora, a gente só esqueceu de combinar com a pobreza, néah?!"

É óbvio que a maior parte das pessoas razoáveis não vai achar que crianças de 10 ou 12 anos devam estar transando. Principalmente porque sabemos que muitas delas estão, na verdade,  sendo violentadas por homens muito mais velhos que elas. A questão é outra!

Espia só, que informação interessante. Quanto mais pobre uma menina e sua família, mais precocemente ela iniciará sua vida sexual. Isso é um dado estatístico. Não sou eu que estou falando.  Ou seja, mais eficiente que dizer a esta menina pobre ou miserável "não transe" é dar a ela e a sua família condições para uma vida digna, garantias sociais que a permitam estudar, comer, se abrigar sem ter que trabalhar e até mesmo se prostituir.

Mas acabar com a miséria é difícil, né gente… dá um trabalho! Então vamos só fazer um outdoor, uns vídeos pra colocar no instagram e no youtube por que promover justiça social, redução da fome, da miséria demora muito e cansa a gente!  É coisa de esquerdista.

E veja que inusitado: pré-adolescentes e adolescentes que recebem informações sobre infecções sexualmente transmissíveis, sobre métodos contraceptivos, sobre saúde e sexualidade, a famosa educação sexual nas escolas, iniciam mais tardiamente a vida sexual. Ora, veja! Tratar deste assunto na escola reduz as taxas de infecções sexualmente transmissíveis e de gestações na adolescência e ainda atrasa o início da vida sexual desses adolescentes! Então, por que falar disso com os alunos é proibido?

Eu devo estar com meu pensamento todo trabalhado na maldade, mesmo. Só pode! Minha mente impura está produzindo esta negatividade! Cheguei até a pensar que a intenção deste "governo" é manter as coisas como estão ou piorá-las! Veja como eu sou ingrata e pessimista. Damares  se esforçando tanto para criar uma campanha tão maravilhosa e eu aqui já dizendo que vai dar errado, só por que os estudos mostram que isso é conversa mole pra moralista dormir. Eu fico torcendo contra um projeto tão bonitinho desses. Tem tudo pra receber chuva de likes, ou melhor, chuva de bençãos!

Na minha mente malvada até passou a ideia de que a intenção dessa gente é que mais e mais jovens adoeçam e que mais meninas engravidem cedo, inclusive de seus abusadores. Que encham a casa de mais e mais crianças frutos dessas gestações não planejadas e que  isso faça com que se perpetuem em situação de pobreza e miséria, que não consigam estudar, sair de casa para trabalhar. Que pensamentos absurdos esses meus, não é verdade?!

É claro que não. Essa maldade toda é coisa da minha cabeça.  Tenho certeza que esta política pública foi desenhada e construída pensando nas nossas adolescentes miseráveis lá do Pará, lá do Vale do Jequitinhonha, lá da divisa do Brasil com a Venezuela. Meninas ribeirinhas que mal conseguem acessar a escola e que passam os dias tentando fugir dos seus abusadores, muitos deles líderes religiosos, políticos ou grandes empresários. Registro aqui minha fé que uma campanha propondo abstinência vai ser justamente o que faltava para tirá-las desta situação de violência. Força, meninas! Tia Damares está com vocês!

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Sobre a autora

Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como "especialista em gente, médica de família e comunidade".

Sobre o blog

Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário


Júlia Rocha